Em alguns países do terceiro mundo, especialmente sul-americanos, é frequente que a polícia exiba nas televisões o produto das apreensões que faz na luta contra o crime - não raro, exibem-se também os meliantes, pelo menos uma vez sucedendo-me ver na TV Globo um soldado da PM do Rio a segurar a cara de um favelado acabadinho de deter e recalcitrante em deixar-se filmar para o close-up que excitaria as massas no noticiário da janta.
Uma outra cadeia télévisiva, julgo que a Record, foi ao ponto de exibir um programa regular em que os jornalistas seguem ao vivo e difundem em directo as peripécias das acções policiais, seguindo os agentes, de câmara em riste, durante perseguições ou buscas domiciliárias que se assemelham aos tumultos das hordas futebolísticas.
Os agentes rebentam a porta, entram na barraca, pistolas em punho e caçadeiras aperreadas, e atrás deles, talvez também munidos de mandado judicial, entram pressurosos e agitados o cameraman e o apresentadeiro. Este último vocifera, em cadência frenética, pérolas como "filma esse aí", "olha lá, os bandido 'tão reagindo aos policiais" ou "parece que ali tem droga, foca logo". No fim fazem um panorama geral da tralha apreendida, da bandidagem engavetada e das crianças e das mulheres em gritas e choros, declinam uns comentários moralistas e bem intencionados, congratulam-se com a eficácia do combate ao crime e pisgam-se da favela.
Não sei se esse programa ainda corre e não é que menospreze os problemas da criminalidade nesses países, mas tudo aquilo me parece excessivo e a exibição télévisiva é nada menos que repugnante.
Portugal, à sua maneira de quase sempre, pequenina, não foge a esse tipo de comportamento policial e mediático. Para além do vetusto costume de chegar à porta dos tribunais um conveniente pedaço antes da PJ e dos detidos, já começa a ser habitual que a imprensa (as TVs sobretudo) compareça nas buscas por atacado feitas em certos bairros (quem a avisará?), e vem de há muito sendo também prática da PJ (e doutras polícias) convocar os paparazzi da coisa criminal para filmar, em jeito de troféu, o dinheiro, a droga, os automóveis, as armas, as balanças, os fios de ouro e tudo o mais.
Lamento esses factos e estranho que não haja quem ponha cobro à prática deles, mas não muito, porque me vou já conformando com a quotidiana fatalidade de constatar que a PJ labora em auto-gestão. Em roda livre, por assim dizer, com os seus responsáveis sempre prontos (nos intervalos de se carpirem da incontornável "falta de meios"), a lançarem sobre os eventuais críticos o peso da evidente pureza dos seus objectivos, quando não o labéu de estarem porventura "feitos" com os criminosos, ou serem pelo menos "aliados objectivos" deles e um írrito obstáculo à eficiência do santo "combate" ao crime.
Os políticos invertebrados deste lupanar que temos por república tremem, gelatinosos, com a possibilidade de as massas, instigadas pela angélica PJ e mais os trompeteiros da imprensa, cogitarem haver neles alguma lassidão para com os maus. Vaí daí, a retórica dos direitos liberdades e garantias torna-se-lhes nisso mesmo: retórica, coisa própria de debates parlamentares e/ou proclamações legislativas mais ou menos vácuas, mas entorpecente quando se trata da concreta repressão da matula dos bairros periféricos e/ou "degradados", negros, ciganos ou qualquer cambada de baixa extracção em geral, congenitamente inclinada, como se sabe, às maiores torpezas e aos crimes mais vis. Quando muito, abandonam aquele etéreo plano da retórica se o objecto das ditas práticas policiais (ou, desgraçadamente, judiciárias) calha ser membro da seita. Nesse caso, sempre gelatinosos, tremem igualmente, mas de indignação, e são tomados por fervores correctivos dos desmandos da justiça, assim tomada em geral e abstracto. Pode lá ser, aplicarem-se ao Sr. deputado, autarca, gestor público, director-geral, whatever, esses entorses ao regime de escutas (por exemplo) que têm dado tão bons resultados relativamente aos zézés ciganos que a Pátria generosamente alberga?!
No que respeita a diferenciações, o problema não acaba aqui. Há alguns dias, a PJ logrou localizar um grupo de perigosos agentes da sedição nazi-fassista (para usar a retórica do regime) que traz o país em evidente perigo e contínuo sobressalto. Não duvido da genética estupidez desses satanistas adoradores do Adolfo, com suas cabeças rapadas por fora e por dentro; nem sequer duvido da indiciação de serem agentes do crime de "discriminação racial ou religiosa", cautamente previsto no art. 240.º do Código Penal (e susceptível dos maiores abusos se não for devidamente interpretado). Estou certo de que pelo menos os ditos indivíduos terão sido autores de crimes de detenção de armas ilegais (a fazer fé na exibição televisiva de troféus providenciada pela PJ, comme d'habitude).
Não tenho é ideia alguma sobre a razão de ter sido igualmente apreendido (e também exibido) um perigosíssimo exemplar de um livro da autoria do Sr. Eric Blair, escrito sob o pseudónimo George Orwell e intitulado "O Triunfo dos Porcos" ("Animal Farm", num raro exemplo de tradução consagrada mais expressiva do que o original). Talvez essa fábula sobre a infâmia totalitária de um regime comunista seja, no esclarecido entender dos preclaros Srs. inspectores, sinal patognomónico do irredutível fassismo dos arguidos. Na sua cova, o pobre Sr. Blair dará por esta hora urros de raiva contorcida, de permeio com íntima satisfação pelo acerto da sua previsão, esboçada em um outro livro, que intitulou "1984".
Pergunto: os Srs. Inspectores não encontraram por lá qualquer exemplar das obras do Paizinho dos Povos ou do camarada Lenine? Nem sequer um livrito vermelho do benévolo Mao? E, se encontraram, não lhes mereceu apreensão?
Pergunto também: o Sr. procurador titular do inquérito (por ora, é de supor que algum haja, embora talvez pouco mande no assunto) já ordenou o levantamento da apreensão e a restituição do livro ao proprietário, com esclarecimento público de que o abuso será averiguado e não terá repetição? Se não, o que espera?
Pergunto ainda: e desta vez não há gritas pelo perigo em que a democracia se encontra? Ou isso é só quando acontecem coisas gravíssimas, tais como o primeiro-ministro da nação ser o Sr. Santana Lopes? Onde estão os autoproclamados campeões da esquerda que se diz democrática (o que no caso do Sr. Blair era a mais pura verdade...), sempre andantes e ardentes cavaleiros defensores das mais amplas liberdades? Entenderão porventura que os nazistóides não têm direito a possuir livros, por isso lhes não merecendo a coisa reparo?
Pergunto enfim: se for denunciado como perigoso fassista, perigo que manifestamente enfrento, a PJ, ao fazer a competente busca no escritório do meu domicílio, apreender-me-á as obras do Orwell, que guardo até agora com respeitoso desvelo e recomendo à minha prole? Deixará ficar os cinco volumes das "Obras Completas" do Paizinho dos Povos (edição do PCF, Paris, 1957 - capas duras e ilustrada), que igualmente recomendo? E o que fará ao "Mein Kampf que lá guardo, lido apenas até metade? A omissão da leitura da outra metade valer-me-á atenuante, caso logre prová-la?
Apreensivo com as apreensões, vou tratar, num ápice e a escondidas da vizinhança, de dar sumiço em toda essa literatura perigosa. Não quero problemas com a justiça e li uma vez um livro do Sr. Ray Bradbury (também vai fora, catano!), do qual há filme ("Farenheit 451"), onde se ensina muito bem o mal que os livros podem fazer; apre. Claro, podia emprestar ou mesmo doar as obras completas do Orwell aos Srs. PJs, à seita do bloco, aos Srs. Procuradores e tutti quanti - admitindo porém que os conseguissem ler (e é um grande se...), não ponho a menor fé em que isso lhes aproveitasse minimamente. Fica a apreensão - e o triunfo dos porcos.