A escrita de Borges, como os copiosos labirintos que a povoam, prende o espírito do leitor, condenado a percorrê-la, laboriosa e inutilmente procurando, entre as suas inumeráveis esquinas e infinitos corredores, um fio que o leve à saída. Uma vez entrado, o inquiridor de mistérios literários já não volta. Pela vida fora julgará com frequência que palmilhou todo o inverosímil edifício e que, não lhe vendo a porta e nem sequer o sentido, de algum ignorado modo saiu, ou foi retirado. Porém, e essa é a cadeia mais forte, regressa sempre, uma e outra vez, em todas vendo vendo ruir o conhecimento que julgava ter, em todas sendo forçado a vaguear por novos corredores, a dobrar novas esquinas. Á força desses retornos e reiteradas frustrações, tende a acreditar que topou com novas Escrituras: ali há tudo, ali está tudo, em todos os tempos, e em boa verdade o que ali não encontrar explicação não tem relevante existência.
Passe algum gongorismo, induzido talvez pelo ócio, quero assim justificar o recurso às tramas do grande escritor para interpretar mais um fenómeno da suposta modernidade lusitana. Enquanto nos não guinda a cumes de progresso e desenvolvimento ainda inalcançáveis até pela vista, o que garantidamente sucederá logo que nos outorgue o casamento e a adopção gays, entre outros epítomes de civilização que por ora nem logro sonhar, a esquerda, sempre vigilante, exultante por topar com fassistas dos verdadeiros, indigna-se com um cartaz. Pela voz das suas costumadas vestais, grita, rasga as vestes, brande artigos de código penal e exige prisões - exige pelo menos a queima da papeleta, em novíssimo auto-de-fé, no qual o abjecto objecto consinta, como efígie, morigerar a inevitável frustração de uma temporária impossibilidade de lhe chamuscar os coladores.
Mas o que tem o Borges que ver com isto? Eu digo.
Em 1949, incluído n'"O Aleph", urdiu um conto intitulado "Os Teólogos". Nele João de Panónia, castigador da heresia dos anulares, ou monótonos, que breve e certeiramente refutou, levou com isso Euforbo, o heresiarca, a ser condenado à fogueira; enquanto não ardia (é um modo de dizer...) proclamou Euforbo que "isto aconteceu e voltará a acontecer. Não acendeis uma pira, acendeis um labirinto de fogo. Se aqui se unissem todas as fogueiras que eu tenho sido, não caberiam na terra e os anjos ficariam cegos. Isto disse eu muitas vezes".
Em todo o caso, Aureliano, coadjutor de Aquileia, viu-se ultrapassado pela refutação de João de Panónia e doeu-se da intrusão deste na sua especialidade teologal. Nos anos seguintes levaram a cabo silenciosa contenda; cada qual por seu lado afanosamente castigava novas heresias e debalde nos textos de um se procurariam referências ao outro.
Muito depois, procurando sintetizar ainda mais uma heresia, que lhe cumpria refutar, e esta postuladora de que o tempo não tolera repetições, Aureliano tirou da mente um texto que logo reconheceu ser recordado e não original; reflectindo, lembrou que era nem mais nem menos do que o argumento de João para condenar os anulares, o que não deixou de sublinhar quando apresentou a sua nova refutação: em resumo, escreveu que o defendido pelos novos hereges era afinal o que já antes um ilustre varão dissera: "o que ladram agora os heresiarcas para confusão da fé, disse-o neste século um varão doutíssimo, com mais irreflexão que culpa". O afã de queimar os mais recentes levou o teólogo com eles coincidente à mesma fogueira. Ardeu João de Panónia, que antes de morrer julgou recordar no rosto do inimigo o de alguém.
Ora, o tempo não pára e mais tarde ainda morreu também Aureliano, que entretanto sempre se justificara da conduta que levara à morte de João; curiosamente, um incêndio que a Providência ateara com um raio fê-lo morrer como morrera João.
O final da história, e cito, "só pode ser narrado com metáforas, já que se passa no reino dos céus, onde não há tempo. Caberia talvez dizer que Aureliano conversou com Deus e que Este se interessa tão pouco por diferenças religiosas que o tomou por João de Panónia. Isto, no entanto, insinuaria uma confusão na mente divina. É mais correcto dizer que no paraíso Aureliano soube que para a insondável divindade ele e João de Panónia (o ortodoxo e o herege, o aborrecedor e o aborrecido, o acusador e a vítima) formavam uma só pessoa".
E eis aqui, enfim, onde pretendia chegar. Não o sabem, porventura; talvez nem sequer o suspeitem, mas são uns e os mesmos, os heréticos coladores e os "pontualíssimos inquisidores de heterodoxias" que em lugar de lhes atacarem a heresia, ou a mais disso, os querem privar do direito de postar papeletas. Acendem labirintos de fogo, porque é o que sabem fazer e, monótonos, assimilam quem se oponha a mais fogueiras aos mesmos hereges que querem queimar e que se puderem os queimarão a eles.
2 comentários:
Grandessíssima resposta deram os tipos do Gato Fedorento (cartaz brilhante), aliás com ela respeitando o direito dos estúpidos a colar cartazes. Porém, e por uma vez estarei de acordo com um esquerdista que pontifica no Público (Rui Tavares), veio logo o gajo da câmara de Lisboa a dizer que aquilo era publicidade (!), a taxita não foi paga e vai daí toca a arrancar o cartel...
Há gente que não aprende.
A taxa, pois claro... O que é a liberdade de expressão comparada com a taxa, hem?
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