Cícero, denunciando Catilina no Senado

Cícero, denunciando Catilina no Senado

04 abril, 2007

Os Tigres - atrás de Borges


«DREAMTIGERS

Na infância exerci com fervor a adoração do tigre: não a do tigre fulvo dos camalotes do Paraná e da confusão amazónica, mas a do tigre raiado, asiático, real, que só os homens de guerra podem enfrentar, sobre um castelo, em cima de um elefante. Costumava demorar-me sem fim diante de uma das jaulas do Jardim Zoológico; apreciava as castas enciclopédias e os livros de história natural pelo esplendor dos seus tigres (recordo ainda essas figuras: eu, que não posso recordar sem erro a fronte ou o sorriso de uma mulher). Passou a infância, caducaram os tigres e a sua paixão, mas estão ainda nos meus sonhos. Nessa napa submersa ou caótica, continuam a prevalecer. Senão veja-se: adormecido, distrai-me um sonho qualquer e logo sei que é um sonho. Costumo então pensar: isto é um sonho, uma pura diversão da minha vontade, e já que tenho um ilimitado poder, vou causar um tigre.
Ó incompetência! Nunca os meus sonhos sabem engendrar a apetecida fera. Aparece o tigre, isso sim, mas dissecado ou débil, ou com impuras variações de forma, ou de tamanho inadmissível, ou muito fugaz, ou parecido com um cão ou um pássaro.»



«O OUTRO TIGRE

And the craft that createth a semblance
Morris: Sigurd The Volsung (1876)

Penso num tigre. A penumbra exalta

A vasta biblioteca laboriosa
E parece afastar as prateleiras;
Forte, inocente, ensanguentado e novo,
Ele irá por sua selva e manhã
E marcará seu rasto na limosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(No seu mundo não há nomes nem passado
Nem há porvir, só um instante certo)
E saltará as bárbaras distâncias
E farejará no entrançado labirinto
Entre os odores o odor da alba
E o odor deleitável do veado.
Entre as riscas de bambu decifro
Suas riscas e pressinto a ossatura
Debaixo da pele esplêndida que vibra.
Em vão se interpõem os convexos

Mares e os desertos do planeta;
Desta casa de um remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre que és das margens do Ganges.
Escorre a tarde da minha alma e penso
Que o tigre vocativo do meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários
E de memórias da enciclopédia
E não o tigre fatal, a aziaga jóia
Que, sob o Sol ou a diversa Lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala
Sua rotina de amor, de ócio e de morte.
Ao tigre dos símbolos eu opus
O verdadeiro, o de cálido sangue,
O que dizima a tribo dos búfalos
E hoje, 3 de Agosto de 59,
Alarga na planície pausada
Sombra, mas já o facto de o nomear
E de conjecturar sua circunstância
Fá-lo ficção da arte e não criatura
Vivente das que andam pela terra.

Terceiro tigre buscaremos. Este
Será como os outros uma forma
Do meu sonho, um sistema de palavras
Humanas e não o tigre vertebrado
Que mais além das mitologias
Pisa a terra. Bem o sei, mas algo
Me impõe esta aventura indefinida
Insensata e antiga e persevero
Em buscar pelo tempo desta tarde
O outro tigre, o que não está no verso.»

O Fazedor, 1960

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