O que é o poder? Esta interrogação alberga um pressuposto. Presumimos que o poder é uma essência que pode ser definida. O poder é entendido como coisa quantificável, como capacidade objectiva, como atributo. Todas estas caracterizações surgem desta interrogação essencialista. Todavia, talvez fosse frutífero inverter o prisma da análise e, seguindo Foucault, interrogarmo-nos acerca do seguinte: Como é que o poder é constituído? Assim, abandonamos as considerações que têm que ver com a natureza intrínseca do poder e embarcamos numa análise das formas diversas da sua constituição
O senso comum diz-nos que a essência do poder não é dissociável da sua existência: o poder é... as formas como existe (perdoem-me as tensões gramaticais). Esta bifurcação analítica enganadora, que separa o poder (entendido como essência) das suas condições existenciais, uma propensão epistemológica deveras infeliz que caracteriza muito do pensamento político contemporâneo anglo-americano, não foi corrigida pela sensatez do mais elementar senso comum. Até certo ponto, a ausência de uma rectificação é compreensível. As análises da constituição do poder revelam mecanismos e processos de natureza diversa que, considerados no seu conjunto, ameaçam a integridade conceptual de qualquer definição da essência do poder.
27 comentários:
Vá la explicar isso a grande parte da nossa blogosfera (sobretudo aos liberais da nossa praça) que "o poder" não é necessariamente um atributo de uma entidade identificavel (individuos, conjunto de individuos, Estado) e eles perguntar-lhe-ão: mas se não está "aqui" ou "ali" está onde?
O pensamento politico essencialista cheio de "substancias" e entidades precisas é difícil substituir.
Cumprimentos,
Joao Galamba
Muito bem. Mas troca por miúdos a última parte do postal. Nomeadamente, explicas quais são os "mecanismos" e "processos de natureza diversa" que ameaçam as tentativas de uma concepção essencialista do poder (pensas na necessidade de considerar a "intenção", de proceder à "comparação" conforme os contextos, etc.?).
Caro João Galamba
Atrever-me-ia a dizer que os nossos eminentes liberais (na blogosfera) não são liberais, no meu entender. Além disso, a meu ver, o liberalismo (de Mill) não é contrário à reconceptualização (Foucauldiana) do poder: os jogos da verdade de Foucault e a discussão pública de Mill. Existem paralelismos.
Grato pela visita. Volte sempre.
Cumprimentos,
Caro Tortor,
Vou ilustrar a minha resposta com exemplos retirados das obras de Foucault, um filosofo que merece consideração, no meu modesto entender.
Foucault opõe à metáfora do estado, ou do poder estatal, que é organizado de forma hierárquica e coerente, a imagem da disseminação das chamadas "tecnologias do eu." (esta é apenas uma das dimensões do seu projecto critico que tem o poder como objecto de análise). As tecnologias do eu são práticas interpretativas através das quais o sujeito (a sua identidade, postura existencial etc) se constitui. Ora, na filosofia clássica esta actividade hermeneutica era habitualmente destituida de uma dimensão política (o Cogito de Descartes, tem muito pouco de politico...é um ego reflectivo e pouco mais...é impt ter presente que Foucault está a conversar com uma determinada tradição filosófica). Ou seja, Foucault contempla uma dimensão previamente negligenciada do poder: a formação dos sujeitos, das suas identidades, pre-disposições e práticas. Invés de enfatizar a análise de capacidades já constituidas, em atributos quantificáveis (do estado), ele contempla os jogos da verdade em que os sujeitos, embrenhados em praticas da verdade (nas quais se definem como sujeitos da verdade, interiorizando concepções de identidade). Estes são micro-processos que se disseminam por todo o corpo social: bastará recordar o poder confessional dos nossos dias. Estas práticas encontram-se profundamente implantadas (de forma diferenciada pois os sujeitos que emergem destes jogos de verdade são distintos) nas escolas, nas instituições militares, nas prisões, nos asilos mentais. Para não falar da colonização das mais diversas instituições por aquela suprema disciplina normalizante, a psicologia. Mas não respondi adequadamente à tua interpelação, meu caro camarada. Estou com pressa para o grande jogo. Mais tarde, postarei mais alguma coisa sobre este assunto fascinante (a meu ver).
Abraço,
Obrigado pelo comentário
VA
Refresso, são e salvo, de uma excitante aventura noturna. Acerca do Foucault:
Dois exemplos(meus) talvez sirvam para ilustrar, de forma mais adequada, o que pretendo exprimir.
Comparemos a escola da escolha racional à genealogica Foucauldiana (F chama de análise genealógiam o estudo analítico dos processos de formação do sujeito). Esta comparação servirá, julgo eu, o propósito de clarificas algumas diferenças pertinentes.
O sujeito (uma concepção da natureza humana que sustenta muito do que hoje se vê na política, as noções de performance, por ex.) da escolha racional é um sujeito calculista, ciente das suas capacidades, formula e implementa estratégias de maximização de interesse proprio, recorre ao critério utilitário como modus operandi...joga jogos de zero-soma, ou complexos...Em suma, é um individuo que se conhece, que supostamente conhece as suas capacidades, os seus interesses...Nesta cocnepção, poder é tua capacidade de conseguir que x faça Y para ti ou talvez de impedir que Y te negue a possibilidade de obter Z e por aí fora..A decision science, a escola racional, etc são ciências sofisticadissimas e detenhem um poder imenso nos departamentos de Economia e Ciencia Política em todo o mundo Anglo Americano. Não seria exagero afirmar que são a escola hegemonica, o que talvez explique (mais profundamente) alguns erros cometidos recentemente.
A escola Foucauldiana afirma que o verdadeiro poder não é o do sujeito racional mas o de moldar ou formar sujeito x ou y. O verdadeiro poder é o poder da formação. Ou seja, como é e porque é que se formam individuos como os actores racionais da escola racional, ou personalidades autoritárias, ou caramelos que sentem a necessidade de confessar a sua vida na télé (como diz o nosso camarada Kzar) Repara que a perspectiva de Foucault não é sociológica per se.
É genuinamente filosófica, e se o leres perceberás porquê. É evidente que esta genealogia analitica -que muda de caractér ao longo dos tempos (neste aspecto Foucault é parecido com Wittgenstein...o seu pensamento não é internamente coerente ou rigosamente sistemático...é honesto, atravessa crises, hesitações, cissões...quase todas elas interessantes. Só mais um exemplo. Considera a problemática do terrorismo. Um analista da escola racional tentaria explicar os actos terroristas em termos utilitários: o que pretendem, quais as capacidades etc...mas estaria a se gagar para os individuos terroristas, como entidades históricas...O genealogista procuraria estudar as madrassas, os "jogos" de verdade complexos através dos quais o sujeito emerge como um dogmático fanático, a relação do dogma com o transcendentalismo teocrático, (etc) como é que ele desenvolve capacidades etc..olharia para aquilo que F define como o complexo "epistémico", as práticas, os rituais, toda a parafernália socio histórica que cria o filho da puta do terrorista.
Um outra virtude do pensamento Foucauldiano é que ele detesta a hermeneutica, sno sentido clássico. A realidade não é aquilo que se diz, as interpretaçãos, mas PRÁTICAS concretas, mecanismos como o confessional e o exame...como os pragmatistas Americanos, de quem sou um devoto fã (muitos deles de qualidade superlativa, mt superior ao Foucault, como Dewey e James por exemplo)
a realidade não é feita de palavrinhas, quantas vezes as palavrinhas não correspondem à realidade? O que interessa é aquilo que a malta faz...o resto é irrelevante!
Um grande abraço.
Mais uma vez, obrigado pelo comentário.
Caro VA,
Alguns pontos:
-Não entendo essa distinção entre práticas e palavras. Não acha que a maioria das práticas são discursivas (os discursos tornam determinados "objectos" possíveis)
-A componente não sistemática de Foucault é deliberada, uma vez que ele quer romper com a noção de totalidade
O meu problema com Foucault é que a sua noção de poder assume uma espécie de principio/categoria transcendental da possibilidade de certos fenomenos/objectos. Se o poder é uma categoria Ontologica fundamental (uma espécie de "foundationalism") será que tem alguma relevância prática? Por outras palavras: se tudo é poder, em que medida é que isso pode ser libertador (apenas nos movemos em diferentes configurações de poder e nas tensoes que este permite mas de onde nunca escapamos)?
Cumprimentos
Joao Galamba
Carao João Galamba
Antes de mais, desculpas a todos pelo meu Português lastimável. Vivo em França há muito tempo
Não se trata de uma distinção, mas de uma clarificação. Deveria ter explicitado isto. A dimensão hermeneutica é fundamental, como é evidente, mas não assume a mesma forma e lógica da hermeneutica de Ricoeur, por exemplo. Considere o caso do confessional ou do exame. É mais importante considerar a produção da verdade do que a sua natureza especifica para sujeito x ou y. O sujeito não aceita definição x porque considera o sentido de y relevante. O sujeito interioriza sentido Y porque se coloca e é colocado numa situação "epistémica" onde sentido Y faz sentido. Trata-se da produção do sentido. Daí Ricoeur ter chamado Foucault e Nietzsche "mestres da suspeita."
Sinceramente eu não sei se ele pretende romper com a noção de totalidade. Foucault detestava a ideia de que a investigação filosófica está sujeita às intenções do autor. Adiante. Penso que ele acreditava genuinamente que a noção da totalidade, tal como esta é entendida no sentido clássico (como uma totalidade epistemológicamente acessivel ou como uma totalidade social homogénea ou...), não é defensável filosoficamente. Esta também é uma tese dos pragmáticos Americanos. Contudo, a meu ver, ele não abandona a noção de totalidade: reconfigura-a, é uma totalidade plural, composta por práticas distintas de auto-constituição do sujeito etc..mas, tudo bem, este é um ponto a debater...
Bem observado. O poder é de facto um facto ontológico. Mas não um princípio (ou categoria) dedutivo-a, porque, como disse..o poder é produtivo e é relacional...a sua produtividade nega a possibilidade da sua redução a um principio ou categoria. Isto gera uma dificuldade: se é tão diverso bla bla. como é que sabemos que é poder?? Ou seja, estaremos perante uma essência ou uma existência (plural). Outra questão a considerar. Sim, pode ser uma forma de fundação (no sentido de pilar) mas, aqui, também tenho as minhas reticências. O poder, para Foucault, não é um processo estável ou homogéneo e a noção de fundação parece exigir alguma estabilidade normativa, por assim dizer.
O poder tem relevancia pratica precisamente porque é uma dimensão ontológica: Basta pensar nas hierarquias (organização social), no poder normativo da verdade (ou seja, organizativo, entre outros), nos mecanismos de persuasão, etc. Contudo, há aqui uma dúvida. Consideraria o poder-tem todas as suas dimensões-como um fenomeno de primordial importância filosófica- não menos importante do que o sentido, a temporalidade, a subjectividade, a linguagem etc...
Cumprimentos,
VA
VA,
Ter mencionado a Hermeneutica da suspeita parece-me um óptimo ponto de partida para criticar/transcender Foucault. O que Ricoeur faz é rejeitar o elemento não dialéctico do pensamento de Foucault (e Nietzsche) porque ele é apenas regressivo. Para Ricoeur não há arqueologia (acho que isto também se aplica à geneologia) sem teleologia (é este elemento dialéctico onde se desmascara e se afirma algo ao mesmo tempo -coisa que Foucault não faz, e rejeita). O que eu gosto em Ricoeur (e na filosofia hermeneutica em geral) é a recusa em empreender um pensamento que seja apenas de "unmasking". Estou a simplificar, mas acho que Foucault é um óptimo destruidor de aparências e de falsas necessidades, mas falta-lhe um elemento construtivo e produtor de sentido que aprecio em pessoas como Ricoeur. Quando a essência reprimida de autores como Marx desaparece (foucault faz exactamente isto) sobra apenas uma pécie de "guerra civil" permanente de contestações e recusas. Eu gosto do elemento produtivo do diálogo que a dialéctica hermeneutica de Gadamer e companhia permite. Foucault acaba por ser um pensador monológico, que desvaloriza os elementos enriquecedores do encontro com o outro.
Cumprimentos,
Joao
...mas isto nao implica uma rejeição de Foucault. Eu acho que ele é fundamental; e é-o, sobretudo, na inovação da forma de colocar e abordar certas questões (questionar e problematizar certas supostas auto-evidências) que deviam levar muito boa gente a questionar toda uma forma de pensar (o blog De Rerum Natura é um exemplo claro...).
Em relação à questão da totalidade, eu acho que Foucault a rejeita categoricamente. Penso que a relação do poder com a liberdade, as resistências a formas de subjectivização e coisas do género são exemplos disso. Toda a realidade contém em si mesmo formas de resistência e tensões irredutíveis...
...acho que podemos entender a noção de totalidade através da noção de reconciliação. A existir reconciliação a resistência é suprimida. Por isso ´´e que só pode haver falsas reconciliações que podemos desmascarar e coisas do género...
Peço desculpa pelo lençol.
Cumprimentos; e já agora, parabéns pelo excelente blog
Joao Galamba
...e não tem de se desculpar por português nenhum. Também estive alguns anos fora. A existir um problema, ele afecta-nos aos dois
Caro João Galamba
Il faut défendre la sociéte, um livro onde Foucault é "construtivo".
se, por dialéctica, entendemos relação lógica e conceptual entre momentos do pensamento, então todo o pensamento é dialéctico. Ou seja, se todo o pensamento encerra a estrutura do diálogo...
Ricoeur, tanto quanto sei, nunca criticou Foucault nestes termos. Presumo que esta é a sua interpretação do pensamento de Ricoeur.
Quando se desmarcara e afirma algo ao mesmo tempo?? Gadamer e Ricoeur afirmam o poder emancipatório do diálogo. Se existe projecto normativo explicito da hermeneutica este projecto e´pouco mais do que afirmar o diálogo. Foucault afirma a critica, algo que me parece bastante mais substantivo. O desmascarar já possui um elemento emancipatório. O que Foucault não faz é presumir que existe uma finalidade (teleologia), sem dúvida. Não me parece que a teleologia seja absolutamente necessária para a ética. Esta é uma visão redutora das normas, no meu modesto entender.
Monológico? Caro João, já leu a obra de Foucault? É que não se trata apenas de poder. Outros tópicos como conhecimento, justiça, verdade, o outro, também são abordados de forma profunda.
Sim, a totalidade pode ser entendida pela via da reconciliação (se a premissa anterior for a do conflito) Mas há formas diversas de pensar a totalidade: até podemos dizer que a totalidade é composta por tensões irredutiveis, pelo pluralismo...sem perverter o conceito da totalidade. Sobre as reconciliações: para ele, as reconciliações que existem no mundo são verdadeiras para aqueles que nelas participam. Mas nunca são puras ou inocentes.
A crítica é o elemento mais importante da ética, a meu ver, do pensamento construtivo.
Cumprimentos
Pssst. Desculpem o incómodo. Mas importam-se de traduzir isso em português?
Tens razão, renas e veados...
para a próxima, tentarei o meu melhor...
Isso é tudo amor correspondido (dada a correspodência)?
correspondências, só destas...
http://www.playboy.com/commerce/landingpages/onsert/03_01_07/news/8.html
www.playboy.com/commerce/landingpages/onsert/03_01_07/news/8.html
Caro João,
Todos aqueles posts sobre paneleiros no seu blogue levaram alguém a pensar, suponho eu, que eu e tu, nobres cavaleiros da ninfomania hetero...somos panascas...ah ah aha hah a ha h ha hah a h h
Já não me ria assim há muito tempo.
Viva a panascada!! (maior numero de mulheres disponiveis)
abraço, VA
Caro João
Queria dizer: Já leu TODA a obra de Foucault??
Espero não o ter ofendido.
Melhores cumprimentos
Regresse sempre, é um prazer conversar consigo.
VA
VA,
O que escrevi sobre "pensamento monológico" foi mal entendido (ou mal explicado). Tentava dizer que o encontro com o outro é sempre pensado sob o prisma de luta ou conflito.
Negar e afirmar corresponde ao "demythogizing" do Ricoeur. É algo que aceita a critica Nietzschiana e Freudiana (por exemplo) ao mesmo tempo que encontra um elemento teleológico no resultado desse movimento crítico
(não fiquei ofendido)
Cumprimentos,
Joao
...confronto/conflito que não concretiza nada (ao contrário, por exemplo, de Hegel)
só agora vi o seu comentário. Tenho que sair por uns momentos. Já lhe respondo. Cumps, VA
Caro João,
Confesso que desconheço estas interpretações (de Foucault e de Ricoeur), que me parecem interessantes. Será que podia trocar isto por miudos? Ficar-lhe-ia agradecida.
O que é que se concretiza no pensamento de Hegel (onde e como)?
"Negar e afirmar corresponde ao "demythogizing" do Ricoeur. É algo que aceita a critica Nietzschiana e Freudiana (por exemplo) ao mesmo tempo que encontra um elemento teleológico no resultado desse movimento crítico."
Isto também me parece muito interessante mas é excessivamente ambiguo. Por favor diga lá de sua justiça. Os meus conhecimentos da obra de Ricoeur são assaz superficiais. Onde posso encontrar esta teleologica (ética, normativa)? Em que livros ou ensaios?
Obrigado.
Melhores cumprimentos, VA
Peço desculpa, mas só agora vi os seus últimos comentários.
Ricoeur escreve abundantemente sobre isto no seu livro "Conflict of Interpretations" (ver sobretudo os seus artigos sobre Freud e Psicanálise, ou sobre "meaning and symbols -não me lembro dos títulos exactos). O que Ricoeur diz aplica-se a Foucault na medida em que ele diz que não existe arqueologia sem teleologia. O meu problema com Foucault é que ele reduz/destroi todo e qualquer possibilidade de existir um contexto de significados positivo e orientador. A sua hermeneutica da suspeita reduz "meaning" a um efeito de poder e torna complicado que a sua critica seja de facto uma "critica". Por isso ele acaba por se tornar uma espécie de positivista (esta é a critica que Habermas lhe faz no seu livro Philosophical Discourse of Modernity).
O que Ricoeur diria sobre Foucault (também não conheço a sua obra assim tão bem e não sei se ele, de facto, escreveu sobre Foucault) é que a sua arqueologia e a geneologia pressupôem uma teleologia (o que é o final do último livro da historia da sexualidad-se bem me lembro- se não uma teleologia do humano?), o que colocaria o seu pensamento numa contradição performativa...
Quanto a Hegel penso que ele acusaria Foucault de algo semelhante: o seu pensamento é unilateral, contendo apenas negatividade.
Caro João Galamba,
Um muito obrigada pela resposta.
Por acaso conheço o Conflit des Interpretations de Ricoeur. Devemos clarificar o seguinte.
O conceito de arqueologia, que em Ricoeur poderá ser entendido como passado (arqueologia será a sedimentação de sentidos que constitui o horizonte de acção do sujeito) é de facto teleológico. Todavia, a arqueologia de Foucault também é teleológica. Por ex, as identidades e praticas que o sujeito Foucault assume como suas determinam o seu ser futuro (logo, tem uma finalidade, um telos). O que é importante compreender aqui é que as finalidades (os telos) emanam das praticas, estão situadas na estruturação da subjectividade, e não num processo mais alargado (Hegeliano) da articulação da racionalidade histórica. A pratica do confessional tem um telos. O que Foucault renuncia é a ilusão de que existirá um dia uma ordem normativa sem contradições, vulnerabilidades, um telos-finalidade que não possa ser criticado.
Foucault não reduz todo o sentido ao poder. Penso que é importante compreender que todos os sentidos detem um poder (de diferenciação, por exemplo)...mas num particular dou-lhe toda a razão: todos os sentidos que são entendidos como verdade são poder no mais imediato significado do termo. Estruturam, demarcam. Esta é uma das mais importantes contribuições originais de Foucault(Nietzsche abordou o assunto mas nunca desta forma). Todos os sentidos são poder, par definition. F aborda os sentidos emancipatórios, creio que é nestes que fala quando se refere a finalidade (embora não existam apenas finalidades emancipatórias...existem também finalidades da dominio, de organização, etc que antecedem o pensar emancipatório) mas nunca sacraliza o discurso emancipatório, nunca lhe concede o "privilégio" da utopia...ou do dogma (está sempre a revistar a moralidade como Connolly escreveu)
F não reduz "mening" ao poder. O proprio sentido, na sua relação com a verdade, institui-se como poder. Esta caracterização que faz de F parece-me muito leviana, se me permite a sinceridade.
Habermas, Benhabib, Honneth, e Taylor cometem, todos, um grave erro de interpretação quanto a Foucault. F fala de praticas que se transformam. Fala continuamente na produtividade das relações entre o poder-conhecimento-verdade. Isto não é positivismo. Poderiamos afirmar que a tentativa absurda de Habermas inscrever um sensibilidade ética em cada um de nós (sob a forma de um pressuposto ético activo no dialogo) como um passo positivista.
Quanto à redução de tudo ao poder, também discordo. Esta é, a meu ver, uma das criticas mais frequentes e menos plausiveis de Foucault. É por esta razão que o terceiro livro da Séxualité deve ser lido no contexto dos outros.
Quanto ao argumento da negatividade parece-me, mais uma vez, simplista. Foi Kant que identificou a critica como disposição integral do iluminismo, da propria ética. Parece-me insensato reduzir a critica à mera negatividade embora concorde que F não propõe nada de grandioso no domínio da ética (orientações especificas etc). A ética, para Foucault, é um trabalho constante.
Os meus agradecimentos pela sua contribuição.
Volte sempre
Cumprimentos
VA
Como disse anteriormente, o poder é, para Foucault, uma categoria ontológica: como a linguagem, o tempo, a verdade, o conhecimento, a afectividade ( o poder de uma ideia, de um acto, o poder de expressão, o poder da verdade,o poder do conhecimento, o poder da violencia e, claro, o poder da justiça.... etc...) Repare que aqui não é o poder, como categoria essencial, que sublima (ou produz) tudo (a verdade, etc)... Tudo isto é um epistéme complexo.
Não se trata de reduzir tudo ao poder. Trata-se de expandir a conceptualização do poder.
Cumprimentos
Cara VA,
Uma das coisas que eu não entendo em Foucault é a relação poder-emancipação.
1-Se o Poder é uma espécie o horizonte transcendental que torna possível que existam contextos de inteligibilidades
e se
2-Foucault desmascara todo e qualquer horizonte, reduzindo-o a configurações contingentes de poder
Então eu não consigo evitar algumas questões:
3- Como é que o pensamento de F pode ter consequências práticas se acaba por negar/desmascar todo o contexto hermeneutico?
4-O Telos do dialogo hermeneutico (aqui acho que tanto Gadamer como Taylor são demasiado optimistas ou mesmo ingénuos...) tenta escapa a uma lógica de dominação. Será que a filosofia de Foucault permite entender esta componente produtiva do dialogo? Ou se todo o diálogo é "dominador" por configurar um contexto o que singifica "denunciar" esta dominação?
Não consigo concordar consigo quando escreve:
"Todos os sentidos são poder, par definition. F aborda os sentidos emancipatórios"
Não acha que se "todos os sentidos são poder", a sua caracterização de poder não permite distinguir entre sentidos emancipatórios e não emancipatórios?
"F não reduz "mening" ao poder. O proprio sentido, na sua relação com a verdade, institui-se como poder"
Não acha que o que interessa na dimensão de sentido são as possibilidades interpretativas que abrem (aquilo que é dito) e não o facto de ser dito e de isso constituir uma dimensão de poder (isto é o tal positivismo que atribuí a Foucault) que exclui/demarca/configura?
Num certo sentido existe sempre um certo positivismo em qualquer pensador. A facticidade da existência humana defendida e tematizada por Heidegger também pode ser considerada uma forma de positivismo, na medida em que é uma dimensão da existência humana inescapável. Mas, ao contrário de Foucault, este "positivismo" é visto como algo que confere possibilidades positivas ao sujeito e não algo contra o qual o sujeito afirma a sua liberdade.
Se calhar estou enganado mas tenho alguma dificuldade em interpretar Foucault doutra forma...
Agradeço-lhe a paciência que tem demonstrado.
Cumprimentos,
Joao
Caro João Galamba
Lamento só agora poder responder ao seu comentário. Não o fiz antes porque assuntos familiares ocuparam-me o tempo. Estive a servir de guia turistíca.
1- O poder em Foucault nunca é considerado uma categoria transcendental. Dizer que x tem significado ontológico não significa que tem que ser transcendental (au dehors de la expérience, ou fora do dominio da experiencia) .
2- F não reduz tudo ao poder, no sentido usado pelo João. Esta imagem epicentrica do poder é o que F pretende criticar. Parece-me que o João continua a pensar no poder nos termos do paradigma que F critica. Que poderes (plural)? Existem muitos poderes que apesar de não serem exclusivamente poder, tem que ver com poder: O poder da verdade? Do conhecimento. Da técnica. know how. Da utopia emancipatória? São PODERES e não poder. F nunca fala do poder como uma essencia metafisica. Há diversas formas de pensar a ontologia. Tudo está nas praticas e as práticas não são fácilmente definidas em conceitos univocais.
"3- Como é que o pensamento de F pode ter consequências práticas se acaba por negar/desmascar todo o contexto hermeneutico?"
O que F afirma e revela é uma outra forma de inteligibilidade analitica que jaz sob o contexto hermeneutico. A critica genealogica revela contradições entre práticas-interpretações. Esta é uma virtude prática. E, mais, F nunca desmascara por completo o contexto hermeneutico (ele nunca afirma que as palavras e as interpretações não são importantes etc)
A componente produtiva do dialogo? O que é isso João? As pessoas comunicam, organizam, fazem, agem,e todas estas actividades tem que ver com poder, no sentido mais amplo imaginável (como Spinoza pensou, correctamente a meu ver) Mais uma vez, eu não cairia na armadilha de pensar que TUDO é poder...apenas que tudo tem que ver com a constituição do poder. Numa mas passagens mais memoráveis do seu livor La verité et le Pouvoir, F afirma que o poder "não existe"(como definição poder...existe como processo, como conjunto de efeitos de acções...etc)
Não existe nenhum telos hermeneutico, ou outro, que esteja "fora" do poder. O que é que quer dizer com "produtivo"? Será que está a imaginar uma situação em que a normatividade não se deixe manchar pelo poder?? Está sempre lá. Nos mais recomendáveis e defensáveis projectos de emancipação. Sim, claro, os sentidos emancipatórios são poderosos porque tem quev ver, p ex.. com concepções de justiça (verdade= poder da verdade), com conhecimentos de capacidades (saber se o conceito de justiça social é concretizável...poder aqui é techne) etc...etc
Não me parece sensato supôr que a questão do poder perverte a legitimidade da ética emancipatória...como disse, F poderia argumentar que o melhor garante da ética emancipatória é a critica (porque a critica renova-se continuamente, sem ter que supôr uma finalidade objectiva material tipo sociedade x com caracteristicas y....permite a reforma....
Esta abertura interpretativa hermeneutica é a sua mais confortante ilusão, a ideia de que, regra geral, as pessoas passam a vida a explorar mundos de sentidos etc. As configurações de F não tem que ver exclus com exclusões.. Não existem emancipações inocentes...nunca existiram
Se atribuir um sentido ambiguo a "positivismo" é evidente que todos poderão ser positivistas. Mas, o conceito positivista tem uma conotação mais especifica, que deve ser respeitada.
Sim, a comparação com Heidegger parece-me relevante... F foi muito influenciado por Hdggr...só que, para F, as possibilidades não são meramente históricas-temporais (e as possibilidades que os interessam são distintas) ...são possibilidades no sentido mais pragmático do termo...
Melhores cumprimentos,
Volte sempre.
VA
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