Cícero, denunciando Catilina no Senado

Cícero, denunciando Catilina no Senado

22 fevereiro, 2008

Democracia bem oleada

Apesar de o tempo ser já de campanha eleitoral nos EUA, mesmo assim impressiona o modo como as pessoas se mobilizam, escrevem e protestam. Esta é para mim a questão central, embora a temática mobilizadora também seja interessante.
Poderia simplesmente fazer uma tradução sintetizada do texto infra e, com um pouco de sal e pimenta ficava o comentário feito. Mas as coisas sabem realmente melhor quando se saboreiam também com os olhos. Por isso achei melhor fazer o «cut»; e cá vai:
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«A recent New York Times article examined a number of decisions by Senator John McCain that raised questions about his judgment over potential conflicts of interest. The article included reporting on Mr. McCain’s relationship with a female lobbyist whose clients often had business before the Senate committee led by Mr. McCain. Since publication of the article, The Times has received more than 2,000 comments, many of them criticizing the handling of the article. More than 4,000 questions have been sent via e-mail to The Times on Thursday night and Friday. Editors and reporters who worked on the article are answering some of the questions on Friday.»

13 fevereiro, 2008

O papel

A um conhecido meu morreu a avó. Nada de anormal, particularmente para quem ainda tem avós.
Acontece que ele, que trabalha, como bom neto, foi ao funeral; ou seja, tem que justificar a falta ao patrão.
Ele justificou dizendo precisamente que a sua avó tinha morrido. Para aceitar a falta como justificada, o patrão pediu uma declaração da funerária.
Aqui é que eu começo a estranhar...
A funerária atesta o quê? Que o rapaz foi ao funeral? Que a avó morreu? Que ela, a funerária, fez o funeral?
Eu não sou desta área mas também trabalho e conheço a lei das faltas; tenho a certeza que ela não fala em funerais mas só em mortes. O parente morre e, automaticamente, temos uma licença de x dias; não interessa se vou ou não vou ao funeral. Mas já interessa que o morto seja um dos parentes indicados na lei (ou pelo meu lado ou pelo da minha mulher); ora, a morte das pessoas é atestada pela certidão de óbito.
Não faço ideia do valor que pode ter a declaração (e qual o seu conteúdo) da funerária mas será que ela substitui a certidão de óbito?
Isto não interessa nada porque o que realmente interessa é um papel. O papel é a prova do facto que se clama mesmo que esse papel não tenha valor nenhum.
Ora, como é muito mais barato o papel da funerária (que, afinal, também faz o funeral) do que o custo da certidões de nascimento e óbito, e se calhar de casamento, para estabelecer que o morto é realmente o parente do trabalhador que faltou, é natural que as funerárias desempenhem hoje mais um serviço público: o de passar o papel que a velha morreu.
Ou seja, a palavra do trabalhador não vale nada; precisa de um papel. Mas isto não interessa nada.
O fundamental mesmo, claro, é que haja qualquer papel!

01 fevereiro, 2008

Um dia negro

Há cem anos a desgraça abateu-se sobre Portugal. Dois malvados, o Costa e o Buíça, foram a mão executora dos escuríssimos desígnios de outros desalmados piores ainda. Estes últimos jazem no Panteão, têm estátuas e placas pelo país fora, foram figuras de proa do catastrófico e maléfico regime de opereta que dois anos e pouco depois do regícidio eles mesmos vomitaram sobre a Pátria, e enfim deixaram uma descendência política que anualmente, a 5 de Outubro, como súcia de vampiros, sai das lojas e se junta aqui e ali, decrépita, leprosa, asquerosa, a lançar "vivas" senis a essa meretriz da república.

Desde a infâmia, Portugal foi sempre decaindo, cada vez mais, de torpeza em torpeza, esmagado por uma pilantragem pelintra e voraz para a qual não encontrou ainda remédio. Além disso (maravilhas da falta de memória), há quem chegue a alçar o crime à dignidade de gesto benfazejo e "libertador" (!), fazendo dos carbonários e dos pedreiros republicanos em geral, como de praticamente todos os demais psicopatas da política nacional de então, uma espécie de campeões do povo e, pasme-se, da democracia - a linda democracia outorgada à nação em 1910, como se antes houvesse ditadura, e cuja tumultuária selvajaria engendrou finalmente a ditadura corporativa, infeliz mas imprescindível acto de higiene que a mesma nação teve que suportar ainda por várias décadas.

Tudo isto já nada mais é do que "momentos perdidos no tempo como lágrimas à chuva"*. Basta recordar, para ter noção do calado da tragédia, a crua e imediata dimensão humana respectiva, prenúncio alegórico do que à Pátria cedo viria: um Rei bom e um Princípe Real inocente, pai e filho, abatidos a tiro à vista da mulher e mãe; uma mulher e mãe, mais do que Rainha, aflita, procura proteger a família e afastar os monstros com aquilo que tem na mão - um ramo de flores.


Muitos anos depois, em Paris ocupada, esta Senhora, francesa de nascimento, idosa, exilada, hasteava na sua casa a bandeira nacional - a feia bandeira trazida pela república celerada, mas em todo o caso a bandeira nacional. Quanto à actual Constituição desta vil república que temos, reza, impante e avara, no seu art. 288.º, al. b), que não pode ser revista sem respeito pela forma republicana de governo, assim pateticamente assumida como presuntivo sinónimo de democracia e proclamada como uma espécie de alcançada meta da História. São formas de estar.


* Phillip K. Dick, "Do droids dream on electric sheeps"