É fácil saber contra o que luta a Esquerda – os males de Bush e das multinacionais – mas o quê e quem em concreto contesta afinal? À medida que enumera os absurdos da Esquerda, Nick Cohen pede-nos que reconsideremos o que significa ser de Esquerda nestes tempos turvos e confusos. Com a sátira irada de Jonathan Swift, ele reclama o regresso dos valores da democracia e da solidariedade que uniram um movimento que lutou contra o fascimo, e pergunta: o que resta afinal da Esquerda?
ISBN: 978-989-622-104-1 Formato: 130x220mm
N.º de páginas: 396I
mpressão/cor: 1/1
Capa: Brochada (nunca soube bem o que é isto de capa brochada...)
Preço: 18,00€
A Aletheia é uma belíssima editora; nos últimos tempos, trouxe uma lufada de ar fresco ao miasmático panorama da edição portuguesa, infectado por códigos da Vinci, Josés Eduardos dos Santos, Sousas Tavares, filhas do Solnado que falam com Jesus e outras baboseiras ainda piores, tudo a jorrar incessantemente pelos escaparates das livrarias.
Desta feita, a casa da Sr.ª Zita Seabra (quem diria...) brinda-nos com um dos melhores livros dos últimos anos - pessoalmente, o melhor que li de há um ano para cá, e não foram poucos... No Sábado 10/11/2007, às 11.00 h, larguei pelo meu exemplar os 18 óritos anunciados, na livraria do centro comercial Solmar; no Domingo, 11/11/2007, pelo meio da tarde, já tinha marchado todo - a coisa é de leitura absolutamente compulsiva e no fim fica uma sensação de tristeza por ter acabado.
Com um discurso fluente, claro e entremeado de referências muito bem humoradas, o autor (não imagino de onde veio o bicho, mas Deus lhe pague) põe a nu o estado deplorável a que a esquerda se reduziu nos últimos anos, em particular após o 11 de Setembro e com agravamento significativo na sequência da invasão do Iraque.
Quem porventura imagine que o cartapácio condensa as diatribes de algum empedernido neo con contra o estrebuchante militantismo, oco e saloio, da esquerda ideologicamente orfã, desengane-se. O escriba declara desde o início, e demonstra ao longo da obra, que não morre de amores pelo W. Bush e nem sequer pelo Tony dos ingleses, pelo contrário sendo um filho cultural da esquerda liberal inglesa. Mas isso não significa, algo paradoxalmente, que seja estúpido. Nada disso.
Pelo contrário, usando argumentação que considero ser quase sempre pouco menos que irrefutável (ao menos por quem tenha vergonha na cara e honestidade intelectual, bem entendido), explica, com larga cópia de exemplos e detalhes histórico-sociais muito bem observados, como do alto da sua suposta e sempre auto proclamada superioridade moral, e indisponível para activamente limpar os seus armários dos muitos esqueletos que por lá foi deixando ou até mesmo disposta a fingir que lá não estão, a esquerda se tornou gradual mas rapidamente numa desconchavada rede de ligações e solidariedades informais acerca do disparate; na força motriz da anomia social contemporânea; no aliado objectivo e de todas as horas das piores tiranias que continuam a afligir a humanidade; em suma, traidora das liberdades universais que todavia continua pateticamente a proclamar serem os seus valores matriciais. Tudo em nome da oposição à América, a Israel, ao capitalismo global, "what ever", malefícios brandidos como justificadores de qualquer vilania ou cambalhota de argumentação política.
É difícil (impossível, em minha opinião) não concordar com o autor numa série de apreciações que faz e a menos relevante não é a de que o ideário de esquerda (se disso se pode falar ainda) resvalou em muitos aspectos para patamares de sordidez que incluem o racismo, por regra na modalidade mais abjectamente paternalista, mas de uma hostilidade ferocicíssima quando apresentada na sua preponderante modalidade de atávico anti-semitismo.
Mais significativo contudo, para mim, é o modo como o autor identifica limpidamente uma atitude generalizada da intelectualidade de esquerda e na qual também eu há muito matutava sem lograr expô-la com clareza. É a atitude "família feliz", a saber, a de não levantar demasiadas ondas ou críticas relativamente aos desmandos das suas franjas radicais, pela razão de afinal os respectivos agentes até serem "dos deles" e porventura "bem intencionados"... Atitude que, além de desmotivar a higiene dos armários, com o tempo levou a que a generalidade dos representantes da esquerda liberal, supostamente moderados e sensatos, viessem a assumir como suas, ainda que disfarçadas, proposições vomitadas pelos ditos extremos.
A ponto de tristemente ter de concluir-se que em geral a esquerda ainda dita democrática tem como figuras culturais de proa seres invertebrados que, de transigência em transigência, se tornaram incapazes de denunciar os piores males e tiranias da actualidade e os legitimam com silêncios cúmplices ou suavidades exculpatórias. E isto no melhor dos casos, porque no pior são pessoas verdadeiramente mal intencionadas que defendem qualquer malefício ou barbárie desde que adequadamente "anti-americana" ou no global.
Os primeiros são os legítimos herdeiros dos famosos "idiotas úteis" de antanho; os seus antecessores eram compagnons de route da selvajaria leninista e seus avatares e eles assumem actualmente um papel absolutamente paralelo em relação aos Mugabes, Castros e Chavez que afligem a existência da humanidade, isto já nem falando dos extremos a que se prestam quando o que está em causa é a legitimar atrocidades fundamentalistas desde que islâmicas e "anti-americanas"; denunciar, e com as letras todas, mas só os que não sejam da esquerda e sejam "ocidentalizados". Os segundos não merecem sequer piedade e são no fundo mais um dos muitos rostos da Besta. O que os move a quererem a desgraça humana é um retorcido e patológico sentimento de vingança pela falência irreversível da ideologia assassina do homem novo e dos amanhãs que cantam, que em vez de lhes deixar herança lhes deixou compridas orelhas de burro.
É um facto sublinhado pelo autor e que eu me vejo forçado a reconhecer que na verdade o final do sec. XIX e o sec. XX foram a muítos títulos de afirmação moral da esquerda, a qual construiu vantagem ideológica global ao tomar a dianteira na defesa ou conquista de liberdades e direitos hoje tidos por adquiridos. Todavia, a cultura de esquerda não quis aceitar também o passivo desse património e tomou o activo, a dita vantagem, como uma espécie de alvará para todos os desmandos, o pior dos quais terá sido justamente o de justificar os meios com a alegada bondade dos fins, não se demarcando dos seus muitos maus e homicidas irmãos, filhos ou primos. A pretexto de lavar a roupa suja apenas em casa, a esquerda liberal ficou refém dessa camarilha, que acabou por lhe marcar a agenda e da qual já raramente se distingue; esfumou-se enquanto interlocutor credível, para o que tudo contribuiu decisivamente o repugnante relativismo pós-moderno que tem voluntária e contumazmente sido seu timbre.
Não teria sido necessariamente assim. O grande George Orwell pôs muito cedo a boca no trombone, depois de ir para Espanha combater o franquismo e dar por si a ter de fugir do comunismo estalinista para salvar a pele (coisa que muitos não conseguiram...). Botar a boca no trombone (e fê-lo como ninguém) custou-lhe ser ostracizado e caluniado sistematicamente pela esquerda bem pensante, apostada em manter, contra tudo e contra todos, a mentira já então esfarrapadíssima do "Sol da Terra" soviético. Os exemplos podiam multiplicar-se ad nauseam, mas não vale a pena. Basta a consideração, que sem ironia digo não ser de júbilo, de que ao ritmo actual a mera viabilidade de uma esquerda verdadeiramente liberal e credível vai perder-se, irremediabvelmente e em muito pouco tempo.
Acabo dizendo somente que um certo tom de brutalidade vai aqui emprestado por mim próprio, que sempre julgo não martelar suficientemente a esquerda. O autor é muito mais comedido - mas em rigor, e por isso, deixa a esquerda bastante pior tratada do que modestamente eu seria alguma vez capaz de fazer. O livro é imperdível, um must para quem queira abordar o actual debate político-ideológico com alguma seriedade moral e sanidade.