Nos últimos dias, a propósito de um artigo de opinião do Sr. José Pacheco Pereira (JPP), infligido no jornal "Público", estalou mais uma daquelas polémicas que de contínuo sobressaltam a "blogoesfera" nacional (ver
aqui,
aqui e
aqui). Resumindo, JPP refere-se a determinada obra cujo tema será o potencial da
net para, conferindo capacidade de divulgar opinião a qualquer um, minar progressivamente a cultura ocidental, mediante submersão daquilo que tem valor sob avalanches imparáveis de disparates amadores, arrotadas pela ignorância presumida dos "internautas" comuns.
Às muitas críticas de vários tons que lhe foram dirigidas, JPP replicou, em nota à "postagem" do dito artigo no "Abrupto", que a generalidade (ou totalidade) dos críticos teriam comentado o citado livro sem sequer o lerem, e achariam isso normal, o que para ele é sinal patognomónico do acerto das suas próprias teses.
Será talvez desnecessário juntar a voz ao coro e lançar daqui mais catilinárias, até porque os temores milenaristas que subitamente tomaram JPP extinguem-se habitualmente por si mesmos e tanto mais depressa quanto menos se lhes ligar. A notoriedade do escriba, todavia, move-me a ajudar à festa.
JPP, por razões plrúrimas que seguramente incluem os seus muitos méritos intelectuais mas porventura também outras menos honrosas (recordo, com pouca exactidão, um dito de Miguel Torga, segundo o qual a pequenez da Pátria constrange tal emaranhado de laços que não há vontade de porteiro ou de ministro que se não vença...), é desde há anos personagem com lugar cativo nos púlpitos convencionais onde se produz a opinião lusitana. Tem megafone que adquiriu por usucapião e neste Portugal de opinantes encartados, de especialistas em generalidades e sabedores profundos de quase nada, foi mesmo dos mais lestos a alastrar as suas palpitantes opiniões ao espaço menos convencional da "blogoesfera", abrindo estabelecimento que subsiste ainda.
Constatado isto, dir-se-ia, com espírito cordato, que o mundo é de todos, que se só alguns atinam com os caminhos da publicação em jornais e revistas de larga tiragem ou mesmo na "tele-tele", já a net é acessível a qualquer, que ainda bem e cada qual por si e Deus por todos. JPP não considera assim, todavia. Para ele, o acesso massificado a tal meio de comunicação, permitindo a qualquer idiota que, pasme-se, «sem edição» (!), escreva o que lhe aprouver e alcance maior ou menor público, é receita que leva a nada menos do que a perigo de morte para a cultura ocidental...
JPP procura disfarçar o mais rísivel da sua argumentação sob uma camada de referências críticas a malfeitorias várias que a net e o contexto da sua utilização propiciam e até os mais néscios reconhecem; mas nem por nisso ter razão o argumento central fica menos tolo, e nem efectivamente escondida a parvoíce.
Penso conseguir convocar à imaginação quantos disparates semelhantes terão sido proferidos, com maior circunstância, mais à la longue e radical convencionalidade de meios (que eram outros os tempos) a propósito dessa maléfica invenção que foi a imprensa, com a qual a cultura ocidental foi posta de pernas para o ar. "Então agora qualquer leigo desqualificado publica livros, já não somos só nós nos mosteiros!? E nem são feitos em pergaminho! O que vai ser da ponderada reflexão que tem dado tão brilhantes resultados? E não há Sr. Abade que com paternal benevolência e maior sabedoria escrutine o que vai levar-se às mentes das pessoas? Não será a fé confundida? O mundo deve estar para acabar" - angustiadas reflexões que, com outras similares, terão ao tempo assaltado os antepassados intelectuais de JPP, tudo a respeito da invenção do Sr. Guttenberg.
Claro, JPP, ponderado e até magnânimo, lá concede que da net também venham porventura coisas boas e que o senhor que escreveu o tal livro é um tanto desbocado, inaugurante talvez de um filão editorial com contornos que no plano económico venham a ser paralelos aos do "Código Davinci". É o que se chama dar uma no cravo e outra na ferradura, mas em todo o caso com mais vigor nesta última, ou por outras palavras ver se a malta engole o disparate enquanto olha para as roupagens de juízo e sensatez em que vem embrulhado.
Mas não pega. Felizmente os cavalos não estão para isso e sentem logo o sapato mal calçado. JPP presume, e é talvez essa a explicação da assunção daquela sua posição, que furiosos a teclar, no lado de lá da net, há apenas hordas infindáveis de piratas, ladrões de direitos de autor, malfeitores sortidos e, de toda a maneira, grosseiros ignorantes empedernidos, cavernícolas com uma caneta na mão, amadores ignorantes e presumidos, determinados ao desmantelamento total da civilização. Está errado, o que lhe seria fácil perceber. Há de tudo, como na botica, e os que interessam detectam de imediato o significado último das suas (dele) angústias.
Como escreve um dos primeiros zurzidores, réptil alado, flamejante e sempre atento, obstinado escrutinador de ortodoxias desconchavadas, JPP revela nunca ter afinal abandonado totalmente o ambiente intelectual em que se criou, que lhe moldou o ser nas primícias da juventude, e ter ainda porção considerável do espírito na República Popular da China. Na verdade, até já louva uma alegada legislação italiana que, sem prévia e cabal identificação do usuário (como agora se diz), impedirá o acesso à net em cibercafés...
Talvez queira também instituir a necessidade de alvará, de uma espécie de carta de condução da net, a ser concedida mediante apresentação de atestado de robustez física e saúde psíquica impecáveis, seguida de frequência de escola especializada e subsequente exame, tudo sem prejuízo da dispensa de tais formalidades no caso dos profissionais em trinchar ideias. No fundo, lá bem no fundo, mas muito à vista, JPP nutre um desvelado carinho pelo seu papel de tutor da opinião, e teme pelo futuro da espécie se ele e os demais tutores deixarem de ter mão nisto. Onde irão as coisas parar se agora qualquer um escreve e pode ter algum público? Então esta gente opina e estrebucha no ciberespaço sem querer saber de nós, polícias de trânsito da cultura, sem nos ligar pevide?
É pena. Pensava que JPP, com quem tantas vezes concordo, estava em geral no campo de cá. Mas não, isto do liberalismo é coisa que só medra em terreno fértil. Lá dizia o Orador, «ou é do sal que não salga, ou é da terra que se não deixa salgar...», no caso parecendo-me bem que àquela terra nada a salgará - uma vez comuna, no fundo sempre comuna; bem pode afectar que a preocupação lhe é ditada por justa oposição aos deletérios "libertarismos", taxando como tal o que são para outros as mais fecundas liberdades, mas fica claro que estas é que lhe doem.
Tanto que perde o tino de vez e lança mão do tal argumento bacoco, segundo o qual os sicofantas da ignorância, criticando o livro sem sequer o lerem, lhe dão razão inteira! Ora, eu não li o livrito, mas JPP, tutelar, diz que sim, que leu, e fez o favor de nos resumir a todos a sua ideia central, que de resto largamente acompanha. Pois bem, uso o que resta da credibilidade que lhe atribuo ainda e com ela admito que o resumo é fiel; segue daí declarar que não gosto da ideia, posto que em boa verdade correctamente transmitida, nem da do JPP, que se lhe pegou; e é esta que critico; o maço de folhas, se com ele topar em alguma curva da vida, já o não vou ler, que não há tempo para tudo; mais lógica não me parece poder ser a coisa; e escrevo tudo isto, felizmente sem ter de solicitar, ao JPP ou a outrem, nihil obstat ou imprimatur, a mais disto tudo lembrando ainda que mal à cultura vem sim, e muito, do facto de pessoas letradas e aparentemente até sábias escreverem coisas como «(...) nem por isso, nada nos garante que (...)». Não se maltrata assim a língua de Camões, que nenhuma culpa tem nesta polémica.