Cícero, denunciando Catilina no Senado

Cícero, denunciando Catilina no Senado

29 junho, 2007

A vida nos Açores

Quinta-feira, dia 28 de Junho de 2007. Saído do trabalho mais cedo (cerca das 16.30 h), larguei a mata cavalos para a marina. Pelas 17.15 h, e de acordo com o que horas antes deixara planificado, estava a zarpar para o mar com um camarada pescador, na embarcação dele (as melhores embarcações do mundo são as dos amigos). Regressámos a terra pelas 21.15 h, depois de cumprido o melhor possível o genocídio piscícola. Três bicudas (yellowmouth barracuda - Sphiraena viridensis para os mais espertos), de pouca corpulência, duas garoupas (blacktail grouper - Serranus atricauda para os inteligentes), de apreciável dimensão e, suprema felicidade, uma serra (atlantic bonito, ou Sarda sarda, para os doutores), de nada menos do que três quilos. Falando deste último amigo, importa recordar os distraídos de que se trata de uma espécie de tunídeo, bicheza afamada entre os seres marinhos pela força que obstinadamente opõe ao pescador. No caso, só o primeiro esticão na linha levou bem uns vinte metros. Seguiram-se cinco minutos de prazer peixicida, com este vosso Kzar gradualmente a travar a embraiagem e a enrolar a linha e o animalejo a dar sacões repetidos, recuperando-a diversas vezes. Pouco a pouco, cansado enfim, lá se chegou o ser à embarcação e o camarada expedicionário, prestável, meteu-o para dentro com certeiro golpe de gancho. Mais de duas horas depois, ao espetar-lhe a faca pelo bucho, a fim de o preparar para congelação, o animal ainda tremelicava. Na semana que vem hei-de assá-lo no forno. Vantagens de viver em Ponta Delgada.

A liberdade socialista

Uma vez mais a cáfila que infecta o ministério da instrução, essa gangrena nacional, arma barraca com os exames. Vá lá que ainda há exames, mas será que os tipos são totalmente incapazes de fazer as provas sem asneiras? Este ano, e além de novamente vir disparate grosso numa das perguntas da prova de Química (disciplina em que manifestamente não conseguem acertar), houve um teste de História que também trazia fava rija. Deste último quase não se fala, mas no que respeita ao primeiro já está a haver alarido, como seria de esperar. O que resolveu a Sr.ª sinistra? Simples. Eliminar a pergunta asnática e multiplicar a nota de todos os candidatos por um factor que supostamente terá sido fixado em razão da cotação que tinha a pergunta obliterada. Previsivelmente, uma data de refilões pouco dados a contemporizações e talvez obscuramente ligados à oposição, protesta e aponta as evidentes injustiças daí resultantes. Um político da oposição (certamente feito com os refilantes) exige apuramento de responsabilidades e vai perguntando se nesse estábulo chamado Ministério só há processos para quem profira piadinhas sobre o primeiro sinistro. A Sr.ª sinistra, essa, diz que são só uns quantos os protestantes e, pasme-se, que o planeamento e execução das provas foi um sucesso de 99,99%, acrescentando que "não aceita críticas nessa matéria" (ver tudo aqui).
Nem nessa matéria e nem noutras, a julgar pelo caso do tal professor Charrua (a nota de culpa, acusação ou lá o que é, no processo disciplinar, já circula por aí, mas em PDF - não consigo fazer link - e garanto que é uma pérola...). De resto, a moda pegou, nesta coisa que temos por governo desta coisa a que ainda chamamos país. Agora é o da saúde, que no intervalo de se preparar para nos roubar à grande e à francesa, deu em meter-se com demissões por causa da afixação, num centro de saúde, de um cartaz (fotocópia de notícia de jornal) sobre afirmações suas (dele, sinistro) quanto a nunca ter posto os pés... num centro de saúde! (ver tudo aqui).

No tempo do velho das botas, esse mesmo, o do fassismo, não havia bicho careta de repartição que não botasse piadas sobre o regime, a situação e os seus áulicos. A chufa pronta da Sr.ª Ermelinda do PBX ou a gracinha intelectual do Sr. Professor da anatomia, fossem acerca do Salazar e da Sr.ª D.ª Maria, fossem sobre as conversas em família, eram uma garantia de normalidade e não inquietavam a tenebrosa Pide, ocupada com coisas mais sérias. Os visados, esses e todos os mais pela cadeia hierárquica abaixo, tomavam a coisa por um dado adquirido; uma fatalidade, aliás benigna, e diz-se que o próprio Salazar gostava de saber quais as anedotas que sobre a sua pessoa corriam. Agora não. Agora gozamos a liberdade e a democracia a que temos direito, propinada pelo PS e pelos labregos ferozmente incompetentes que alçou a ministros na Nação. O socialismo no seu esplendor de incompetência atroz e mesquinha tirania de cabo-de-esquadra, pela mão dos mesmos que, fosse outro partido o da brincadeira, estariam há muito aos gritos histéricos pela democracia em perigo e a apelar a indignações, desobediências e revoltas. Porque a liberdade é deles, que a interpretam autenticamente. Repito que por muito menos do que isto produziu-se em Portugal um infame golpe que nos livrou do Santana para nos ofertar o Pinto de Sousa dos diplomas falsos.

28 junho, 2007

É a coisas como esta que chamo crise da Justiça



Um juiz profere uma sentença. Boa ou má, não sei e nem me interessa, mas certamente não agradou o Sr. Pinto de Sousa, que não gosta de maçadas judiciais passivas – porque nas activas parece ser lesto – e nem de ser contrariado. O longamanus blogosférico do Ministério dos Bons Costumes aponta-lhe as baterias e dispara à queima-roupa. Desvairado e incontinente, o dito juiz, na condição de juiz, responde e pontapeia sem dó nem piedade o estatuto que rege as respectivas funções: envia cartas e mensagens electrónicas ao dito funcionário amestrado explicando e discutindo a decisão que proferiu (veja tudo aqui, postais de 25, 26 e 27/7/2007). Pergunta: onde anda o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais tão duro e pronto noutras ocasiões?

27 junho, 2007

O chumbo

Querem ver que o Doutor SS se licenciou na Universidade Independente?

Blair, o mágico

Gordon Brown assumiu hoje a Premiership da Grã-Bretanha. O Escocês, robusto e refinado, afirmou no seu primeiro discurso que o talento na governação, o mérito e a revitalização da “British way of life” (salvar o SNS, investir na educação) seriam as suas grandes preocupações. Também hoje, Blair foi nomeado o Representante do Quarteto das Nações Unidas no médio oriente. Os críticos desta decisão afirmam que Blair, por ter enveredado pela trágica guerra do Iraque, tem a sua credibilidade irremediavelmente comprometida. Não acreditam que Blair consiga ser imparcial e corroboram esta crença com o passado recente do ex PM Britânico. Os que o apoiam citam o seu imenso e eficaz carisma, a sua inabalável diligência e as suas boas relações com todas as elites intelectuais e políticas do médio oriente. Além disso, mencionam também o seu grande sucesso: o processo de paz na Irlanda do Norte. Temos, portanto, que considerar a relação de uma interpretação histórica politizada (desfavorável) com o talento comunicativo. O carisma é habitualmente tratado como uma mera percepção. Todavia, na política, como em vários outros domínios, o carisma nunca é uma mera percepção. É muito mais do que isto: integra vozes dissonantes em diálogo porque restitui à política um dos seus elementos primordiais, a sedução. A sedução inerente ao carisma promove a integração comunicativa de diferenças. Blair é um sedutor nato. O carisma não resolve os problemas, mas pode ser um ímpeto vital para ressuscitar os processos comunicativos que são a infra-estrutura elementar de qualquer negociação política. Como é sabido, Blair é um mestre no que diz respeito à transformação do carisma em motivação política. Ou seja, conhece e pratica esplendidamente a difícil e imponderável arte de converter percepção em causa e acção. O seu sucesso ou insucesso dependerá das condições sistémicas.

26 junho, 2007

A família alternativa e a Sr.ª f.

Além da minha esposa, a legítima, mãe dos meus legítimos filhos, vem-me ocorrendo desde há uns tempos nutrir especial afeição por uma outra senhora, plausível mãe de outros meus putativos filhos, estes privados da normalização da família assente no casamento. Aliás, sucedede-me com frequência que meras atracções carnais degenerem rapidamente em vontade de constituir família, no sentido institucional do termo, pelo menos a fim de com sossego e frequência satisfazer sobre os objectos dessas vontades certos ânimos que por decoro aqui não convém expressar mas cuja exacta natureza facilmente se intui.
Naturalmente, usando de persuaviva diplomacia familiar e algum ascendente sobre os exemplares do sexo feminino (aspecto que por modéstia não encareço), penso lograr compatibilização das vontades da minha legítima e de mais uma ou algumas dessas outras senhoras. Sim, senhoras, embora admita sem custo que outros homens sejam indiferentes à junção de machos terceiros a esses conúbios plurais - ou até que os desejem.

Pela parte que me toca, já estava conformado com o facto de o conservadorismo social e a rigidez das formas jurídicas me não consentirem levar para casa toda essa tropa feminil, fazer-lhes ou não filhos e, mais do que isso, sancionar a festa com a constituição de vínculo matrimonial multilateral - eventualmente adoptando pequenada, para que partilhe de tanto amor familiar. Breve, sempre dei por adquirido que não havia qualquer hipótese de me casar com três gajas, por exemplo (ou até mais alguns gajos também, se a mim e a eles e elas para tanto desse a inclinação), ficando casado com elas e elas todas umas com as outras. Sublinho que quanto a mim só interessava mesmo era gajas, mas convenhamos que juntando ao pagode um ou mais gajos a ideia fica mais ou menos a mesma.

Desesperava, em mortificado silêncio e assustado anonimato, de alguma vez ver reparadas tamanhas incompreensões e injustiças. Eis, porém, que o clima político destes novíssimos tempos democráticos, abre novas perspectivas - uma clareira de esperança, nesta negra floresta de preconceito e opressão. O governo continua a prometer à Pátria cumes de modernidade social e a Sr. f., que é a um tempo seu oráculo e sua incansável paladina, veio agora, de novo, dar cabais mostras de ser minha aliada nesta matéria. Fio-me na sua infatigável capacidade de denunciar e desfazer o imobilismo retrógrado e, se a dita senhora defende o casamento de dois homes, ou de duas fêmas, não vejo por que não haja em rectas contas de defender, com iguais denodo e paixão, que eu me possa casar com duas ou mais tipas (algo afinal calmamente suportado por religiões não particularmente progressistas...), ou uma qualquer tipa com dois gajos ou mais, ou três gajos com outros dois e um largo etc. - é tudo uma questão de amor, parece, e de vontade para manter uma relação estável e gratificante.

Mais tarde, podemos todos casar com os periquitos, os gatos siameses, os peixinhos vermelhos e o mais que calhar, independentemente do sexo, é bom de ver: mal se compreenderia que uma mulher pudesse casar com um canário mas não com uma canária. Já vejo os interessados, a desfilarem pela Avenida da Liberdade, com tarjas, cartazes, gaiolas, casotas, aquários, tanques dos cágados e trelas, todos em alegre parada arco-iris, montes de fatos de látex, proclamações de orgulho na família multi-específica e exigências de descontar o "pedigree-pal" nos impostos.

Nota: esta posta é de certo modo um plágio; um pequeno furto que em momento de pouca inspiração perpetrei sobre o Sr. Dragão - que muito melhor do que eu exprimiu a ideia em questão.

19 junho, 2007

Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
Mário Cesariny - 1923 - 2006

18 junho, 2007

Leitura recomendada

O que há para dizer sobre os professores charrua deste triste país e sobre o que está em causa em episódios como esses está dito aqui por Miguel Castelo Branco.

15 junho, 2007

A consciência de f.



f. está indignada com a posição dos médicos de «um hospital açoriano, de seu nome "do divino espírito santo", [que] se declararam objectores de consciência». Para a paladina das causas fracturantes trata-se de "uma situação inaceitável, que põe em causa direitos fundamentais e que não deixa ao ministério senão uma opção: ordenar aos serviços de obstetrícia que se organizem de modo a que haja médicos não objectores nos seus quadros." É claro que quando fala de "direitos fundamentais", está-se a referir, de entre outros que não explicita, a um putativo e extraordinário "direito fundamental" a abortar, direito esse que se contrapõe, ao que parece, para a jornalista com vocação de constitucionalista, ao dever (porventura igualmente fundamental) de os médicos cooperarem na matança. Para além do absurdo da elevação do aborto até às 10 semanas à dignidade de um direito daquela natureza, surpreende-se uma contradição, também ela fundamental: quando se tratou de justificar o aborto a pedido, a consciência da mulher foi elevada a critério exclusivo da supressão de uma vida humana; quando se trata de eleger o critério com base no qual alguém se pode eximir a participar num acto de tal jaez, já a relevância da consciência do médico parece ser algo incomodativo e que apenas por pudor convém preservar.

Estes ingleses são loucos



A propósito do proselitismo gay a que se presta o Equality Act 2006, veja-se (e pasme-se com) este postal no Portolani. Alguns excertos:


"Teachers will risk prosecution if they do not treat homosexual activity as useful and desirable as heterosexual relations. Offence is subjectively defined and given where someone feels that their ‘dignity has been violated’."


"While the heterosexual married family is treated with contempt, misgivings about homosexuality are characterised as a morbid fear to be fixed with reeducation sessions. Practitioners must ‘challenge’ the ‘homophobic assumptions’, of birth family and panel members, and children must be reconciled to having gay carers."


13 junho, 2007

O Jogo

Causa A transforma B em C
B contém a possibilidade de ser afectado por A (condição de causalidade)
Esta condição de B, que permite a A o poder causal
Faz parte, simultaneamente, de A e de B
Se considerarmos A, B, C como elementos distintos separáveis
Sem considerar relações causais
Não podemos invocar o conceito de causalidade
Uma causa em potência, uma possibilidade, não é uma causa
Uma causa, por definição, causa algo (tautologia)
Logo “a causa” é um processo e não um conceito: relação de causas com condições de causalidade.

Mas, se pensarmos na condição de B como parte de A, a distinção entre causa e efeito torna-se mais difícil de sustentar.

Fixemo-nos na ideia de processo
Imaginemos que a condição de receptividade de B (ao poder causal de A) é onde se inicia o processo causal ou, mais interessante ainda, que ambos (A e condição de B que propicia o poder causal de A) surgem simultaneamente…Onde ficam as fronteiras conceptuais que separam causa de efeito?

Aceitam-se propostas e argumentos. Qualquer ajuda será bem vinda. Lógica nunca foi o meu forte.

11 junho, 2007

O Justiceiro Simpson

Enquanto não encontra outro livro alheio que o inspire, um dos mais proeminentes tudólogos da nossa praça entretem-se arrotando postas de pescada sobre aquilo que inteiramente desconhece, como é usual na espécie e vincada marca de água do exemplar. No Espesso, essa referência do jornalismo português (edição de 09/06/2007), MST escreveu a pérola que parcialmente a seguir se trancreve (o texto completo, para quem não tenha mais o que fazer, pode ser consultado aqui). É um bocado longo, mas vale a pena:


«O pulo do lobo e a estratégia da aranha
Segunda-feira passada, o tribunal criminal de Lisboa mandou em liberdade um homem que a PJ considerava um dos maiores traficantes de droga da Europa, com ligações aos cartéis colombianos e referenciado ainda por outros crimes, como burlas e assaltos à mão armada. A sua relação com a polícia e os tribunais é uma história de alternância entre fracassos e sucessos, que finalmente parece ter ganho. Em 99, é preso (pela segunda vez) mas consegue evadir-se de um quarto de hotel, onde estava sob vigilância de dois polícias, saltando para a rua, numa fuga que ficou conhecida como “o pulo do lobo”. Em 2004, é novamente preso, em Espanha, onde tem acumulado património imobiliário estimado em 42 milhões de euros e que as autoridades espanholas atribuem a lavagem de dinheiro da droga. Transferido para Portugal, é julgado no tribunal de Sesimbra e condenado à pena máxima: 25 anos de prisão. Mas não chega a aquecer a cela: o Supremo anula o julgamento graças a um «habeas corpus» fundado num desses expedientes processuais em que a nossa justiça é pródiga – a irregularidade de uma notificação. Apesar de ainda ter outro mandato de captura pendente, é solto e desaparece no Brasil. Só então a polícia volta a ir no seu encalço e, após dois anos, inúmeras diligências, investigações e dinheiro gasto a persegui-lo, é capturado no Brasil e extraditado para Portugal, em Outubro passado. Repetido o julgamento esta segunda-feira, o Tribunal da Boa-Hora anulou as escutas telefónicas que o incriminariam e julgou insuficiente a restante prova: absolvido. O Ministério Público, que promovera a acusação, aparentemente alheou-se dela em julgamento, limitando-se à forma protocolar de “pedir justiça” – o que equivale a nada.
Agora, o advogado de defesa anuncia que o inocentado vai pedir uma indemnização ao Estado português pelo tempo que esteve em cadeia; a PJ, sem nada dizer expressamente, deixa a pairar o habitual sentimento de frustração, que mostra de cada vez que uma grande aposta de investigação sua morre às mãos dos juízes; e estes guardam um silêncio ensurdecedor sobre um desfecho judicial que, como costumam dizer, é susceptível de gerar enorme alarme público.
Mas, uma de duas: ou a PJ, o Ministério Público, quando promoveu a acusação, e os juízes do tribunal de Sesimbra cometeram todos um tremendo erro judicial, dedicando-se a perseguir um inocente durante anos, ou foi o contrário que sucedeu: os juízes da Boa-Hora, como antes o haviam feito os do Supremo, deitaram fora os esforços e o dinheiro de muitos e mandaram em liberdade um culpado. Qualquer das alternativas é assustadora, tanto mais que, se bem me lembro, este é, pelo menos, o terceiro caso em poucos anos em que réus tidos pela polícia como grandes patrões internacionais do tráfico de droga são absolvidos pelos nossos tribunais. Mas é também assustador verificar como (no caso do «habeas corpus») os formalismos processuais continuam a ter preponderância sobre a justiça substantiva – mesmo nos casos mais graves e onde é suposto que os juízes digam simplesmente “fulano é culpado ou é inocente”, em vez de dizerem “não queremos saber se fulano é culpado ou inocente: a notificação foi mal feita, esqueça-se o julgamento”. E é assustador verificar a frequência com que, graças a uma redacção voluntariamente ambígua da lei, são anuladas em julgamento as escutas telefónicas. Sabendo-se, desde a instrução do caso Casa Pia, que metade do país é escutado habitualmente, cabe perguntar para quê, se afinal tantas vezes as escutas não servem de meio de prova em julgamento?
»

O texto fala por si, sendo esclarecedor quanto àquilo que o escriba pensa sobre as escutas, regras processuais da respectiva realização e seu valor probatório. "Minudências" formais na respectiva realização não deveriam impedir os tribunais de as valorar; de contrário, a polícia investiga e prende, até está convencidissíma de que o artista é um traficante da pesada, mas vêm os malandros dos juízes e soltam-no! Vejam lá o despautério...

Se o pato falante (e escrevente...) se desse ao trabalho de averiguar - assim o intelecto lho consentisse - admitiria talvez que um dos grandes problemas da investigação criminal entre nós está no modo inacreditavelmente ligeiro, para dizer o menos, com que a PJ desrespeita e até despreza as formalidades em matéria de escutas e que estas (as formalidades) não são uma oca bizantinice, mas garantias dos cidadãos, cujo respeito precisamente cumpre aos tribunais assegurar - por mais que a PJ esteja certa de que o escutado é culpado. Aliás, estou certo de que quando os alvos das escutas foram proeminentes políticos, MST terá ponderado, e bem, que o respeito pelas formalidades era imprescindível.


Porém, o que mais me chama a atenção no lamentável escrito desse cidadão, é o nele fazer-se porta voz da frustração policial; desconfio que o veremos ainda a lamentar-se das famigeradas violações do segredo de justiça, fazendo-se eco de alguma frustração policial...

O Pêcê e o Mêpê


Ontem, na SIC, o já insubstituível Doutor SS disse que após o 25 de Abril foi o PC que tomou conta do MP. Foi uma espécie de acordo nos termos do qual os cães de fila do PC ficariam à espreita, fiscalizariam os partidos no poder (a corrupção, claro) já que o PC não tinha ali lugar. O problema (há sempre um problema), segundo o douto SS, foi que nos últimos anos o PC deixou de ter expressão nas altas estruturas do MP e, a partir daí, a instituição tornou-se “egoísta”; os magistrados deixaram de preocupar-se com o bem comum e centraram-se nos seus interesses pessoais, se bem que, ao que parece, vá-se lá saber porquê, isso tenha sucedido apenas na província. Portanto, um autêntico ovo de Colombo. A solução para a crise da Justiça portuguesa é mais fácil do que alguma vez se pensou: devolva-se o MP ao PC. De preferência com a Dr. Morgado como Grande Timoneira-Geral da República.

05 junho, 2007

O Bode


A celerada proposta de lei no sentido de que político que seja acusado em processo-crime fique suspenso de funções é de repudiar. Desde logo, é curioso o facto de se restringir aos autarcas (que, assim, parecem estar para os políticos como os pit bull estão para os canídeos). Depois, viola, quanto a mim, o princípio da presunção de inocência. Por fim, é potencialmente violadora do princípio da separação dos poderes, por razões que não vale a pena explicar, óbvias que são.
De qualquer modo, o que está implícito nesta proposta é o seguinte: na impossibilidade (ou falta de vontade, para que se não me impute ingenuidade) de implementar, ao nível partidário, critérios rigorosos de ética política quanto ao patrocínio de candidatos a certos cargos, pretende-se efectuar um controlo a posteriori. Ou seja, não importa que o partido A ou B patrocine o candidato X ou Y, porventura criatura da mais reles catadura senão mesmo reconhecido alicantineiro. Desde que tenha as condições para ganhar (o que, não raro - circulus inextricabilis! – implica predicados como aqueles), vale tudo. Depois, se a coisa der para o torto e o homem revelar a cabeça feia que todos na agremiação partidária há muito conheciam, branqueia-se a responsabilidade da seita com uma leizinha como aquela agora proposta, de caminho atropelando, ou pondo em perigo, elementares princípios com dignidade constitucional e sacrificando o bode no altar de Azazel.
Como se não bastasse a judicialização da política que uma proposta destas representa, é ainda evidente o perigo, real ou virtual, de politização da justiça ou mesmo tão só a aparência disso. Se amanhã o Ministério Público deduzir acusação contra o Sr. Costa, o Sr. Negrão ou outro da confraria a que pertence ou outra equivalente e os confrades reputarem injusta a imputação, já se está a ver a berraria, que "é o fim da democracia", que "é o Ministério Público que decide quem é candidato a quê", que, enfim, são todos culpados, menos os partidos.

Repita lá isso fáshavor...

Não corro certamente o risco de ser confundido com um qualquer encartado defensor da virginal pureza do Ministério Público (MP) e seus magistrados quando em bloco considerados. Estou por isso muito à vontade para manifestar algumas perplexidades suscitadas pelas declarações recentes de certa figura pública muito mediática, um reputado fiscalista e mais uma reserva moral da Nação - cada vez mais nacinha, como incansavelmente vinca o Sr. Dragão.

Primeiro, o excerto mais sumarento das ditas declarações, do intrépido Dr. Saldanha Sanches (adiante SS), habitual pregador das mais santas virtudes, públicas e privadas de cada um, prestadas como de ordinário à comunicação social, desta feita em forma de entrevista à revista "Visão" (edição de 31/05/2007), e geradoras de mais uma guerra de Alecrim e Manjerona daquelas que recorrentemente mortificam a Pátria:

«Visão: Porque é que a máquina judicial não responde?

SS: Por exemplo, nas autarquias da província há casos frequentíssimos de captura do Ministério Público pela estrutura autárquica. Há ali uma relação de amizade e de cumplicidade, no aspecto bom e mau do termo, que põe em causa a independência judicial

Em segundo, as perplexidades: O Dr. SS disse mesmo isto ou é mais uma trambiqueirice do jornalismo de pacotilha que o país ganhou em sorte?
Parece que agora diz que não foi bem isso que pretendeu dizer e que as suas palavras têm de ser "correctamente" interpretadas. Ainda assim, não duvido de que um homem tão honrado e probo quanto ele, pessoa de tão alvos costumes e salvíficos propósitos como os que sempre ostenta, se dignará rapidamente a individualizar ao menos um só dos "frequentíssimos" casos de "captura" do MP pela estrutura autárquica - já agora, com indicação geográfica, nomes de pessoas e, se possível, qualquer incidência concreta da torpeza em questão, para que as coisas não fiquem assim a modos de em águas de bacalhau, vagas, quietas, pútridas e em condições de serem impingidas à populaça como mais um caso de "olha lá estes ladrões todos, que toda a gente sabe da roubalheira e o MP sem fazer nada, que está é feito com eles!". Não. O Dr. SS não é pessoa de aleivosias demagógicas e infundamentadas e para mais consta que é professor universitário, académico daqueles com curso mesmo e logo presuntivamente insusceptível de ser acometido por acessos de histeria demagógica aguda.
Por último, confio em que o DR. SS possa também esclarecer onde fica esse sítio tão abrangente chamado "província", no qual diz florescerem, fervilhantes, malfeitorias e latrocínios de toda a ordem, perpetrados já não apenas pelos habituais dirigentes futebolísticos e autarcas de degenerados costumes, mas também por magistrados do MP indignos do título e da função, "capturados", não sei ainda como, pelos primeiros. Supõe-se, pelo que o DR. SS deixou entrever nas suas corajosas declarações, que essas "capturas" serão facilitadas por relações de "amizade" e "cumplicidade", que se intuem propiciadas pela pequenez dos lugares - e assim deduz-se que a província é um sítio fora de Lisboa, lugar este último onde o MP já será impoluto ou pelo menos não tão corrompido, não havendo as tais relações de amizade e cumplicidade.
Claro, é universalmente sabido que fora de Lisboa a malta é toda prima, sobrinha, cunhada, afilhada ou compadre uma da outra, inclusivamente do gajo do MP que foi lá parar, a essas parvónias que não são a capital, e que é por isso que a muita corrupção que todos "sabemos" haver nas câmaras fica nas tais águas de bacalhau. Sobre isso o Dr. SS nada tem que esclarecer, que já se adivinhou, com segurança inteira, o que ele intensamente pensa. Pedem-se-lhe, porém, três pequeninas explicações: quais são os aspectos "bons" da relação de cumplicidade estreitada na tacanha pequenez da corrupta "província"? E em que é que essas relações e a surpreendente "captura" (fantástica, esta palavra neste contexto...) do MP põem em causa o poder judicial? Pensará o Dr. SS que o MP integra o poder judicial...?

Certas pessoas, de tanto aparecerem e quererem aparecer, começam a andar às rodas sobre si próprias, cada vez mais depressa, até desaparecerem. Até que o Dr. SS desapareça, misericórdia que o tempo trará sem dúvida, o caso é para o MP investigar - já agora, calha bem que o investigue a amantíssima e justiceira esposa do senhor, ironia a que levou a honrosa conduta de um Sr. advogado de Lisboa, Dr. José António Barreiros, pessoa inteira, inequívocamente honrada e que mais uma vez mostra não se conformar com tagarelas e nem com as meias palavras deles. Bem haja.

OTA (sim, o aeroporto)

O governo não consultou a Associação dos Pilotos.

Palavras, para quê?

01 junho, 2007

França


O que se passou em França durante o processo eleitoral foi deveras extraordinário. O candidato da extrema-direita, Le Pen, conseguiu influenciar de forma decisiva a agenda política de toda a direita Francesa. Fê-la gravitar em torno da “sacrossanta” questão da identidade nacional. Sarkhozy, o candidato da direita tradicional, seguiu-o submissamente. É provável que tenha sido movido tanto pelo medo da deserção de alguns dos seus apoiantes para Le Pen como pela possibilidade de atrair potenciais desertores da extrema direita. Nem a insuspeita socialista Ségolene conseguiu escapar à força gravitacional da questão identitária. O nacionalismo politicamente correcto de Ségolene não é o nacionalismo xenófobo de Le Pen, é certo. Não obstante, esta rentrée da identidade na politica eleitoral foi o facto mais significante das eleições Francesas, independentemente dos resultados eleitorais.

A questão da identidade nacional é uma verdadeira caixa de Pandora. O que é a “identidade nacional”? Práticas sociais e tradições? Valores que são constituídos e praticados livremente no espaço público democrático? Somos aquilo que escolhemos ser ou aquilo que a história “diz” que somos? As duas coisas? Sim! O conceito de identidade nacional encerra uma tensão entre os significados que herdamos e aqueles que criamos. Esta tensão omnipresente faz parte do próprio conceito de identidade. Sem memoria não pode haver identidade. Sem liberdade, a identidade não passa de uma imposição e ninguém se identifica com aquilo que lhe é imposto. Não faz sentido reduzir a identidade a uma ou outra das suas dimensões.

O nacionalismo de Le Pen é um nacionalismo que evoca o herdado, o retorno às origens “impolutas” e, claro, a autenticidade da pertença histórica. É, portanto, um nacionalismo de pendor regressivo que tenta projectar para o presente o que se perdeu no dilúvio imparável da modernidade: a sociedade orgânica e hierarquizada (cada macaco no seu galho), a ordem moral dos princípios absolutos, a memoria da grandeza imperial, a familiaridade cultural etc. Em suma, é a tentativa de restituir uma “essência” perdida. Esta obsessão nostálgica com a pureza, com um principio imaculado ao qual se permanece fiel, faz com que o nacionalismo das origens seja quase sempre dogmático e, por conseguinte, autoritário.

O nacionalismo liberal democrata não emana do reconhecimento de atributos culturais, características étnicas ou religiosas, mas dos valores cívicos, legais e políticos da democracia liberal, como a liberdade por exemplo. Trata-se de uma identidade cívica que não é meramente herdada, apesar de há muito se ter constituído como tradição vibrante em toda a Europa ocidental. É deste nacionalismo que a França precisa. O nacionalismo das origens de Le Pen terá o efeito perverso de exacerbar, ainda mais, os conflitos entre as maiorias e as minorias. O grande problema é que o nacionalismo das origens é muito mais fácil de definir e de promover nas eleições. É sintético e “objectivo.” Não é complexo, nem ambíguo. Estabelece critérios claros de pertença e de identidade e é, por esta razão, sedutor. Liberta os seus crentes da confusão e do medo.

As bruxas

O "Sine Die" vai de vento em popa. Não quero ser fastidioso e repetitivo (vícios em que incorro com frequência, ai de mim), mas ainda sobre o recente frisson gerado a propósito de um acórdão do Supremo escreveu-se ali, apropriadamente ilustrado com a imagem que ao lado reproduzo, um brilhante postal que não resisto a mencionar aqui. Desta feita, o responsável é Pedro Albergaria, escriba de palavra depurada, concisa e exacta, que empresta pluralismo a um blogue em geral um bocado esquerdoso mas de qualidade - tem porém o defeito de não consentir comentários.