Cícero, denunciando Catilina no Senado

Cícero, denunciando Catilina no Senado

29 maio, 2007

A instrução

Tenho uma filha, a caminho dos dezassete anos, felizmente belíssima aluna - e esperta como o raio, catano, o que está longe de ser a mesma coisa, aliás nem sequer esta última qualidade sendo condição da primeira; normalmente só atrapalha.
Ora, a petiza com frequência me vai confirmando, à força de exemplos de vívida modernidade, aquilo que há longos anos sei já: a instrução nacional vai de muito mal a inimaginavelmente pior e começa a ser impossível, para quem não seja psicopata ou sofra de alucinações demenciais, representar o que são e como parecem os labregos pós-modernos que infestam o ministério da putativa educação. Sobre a ministra, estamos todos elucidados bastantemente, mas convenhamos que a coisa vem de muito antes e que não pode ser só ela a responsável. Abstenho-me, a bem da exaurida paciência dos leitores, de esmiuçar as causas e os agentes, os "porquês" e os "quens" (curiosa palavra, com ajustadíssimo potencial poético, emprestado por feliz homofonia); limito-me, contido, a dois exemplos.
Tomei conhecimento, há uns tempos, de que a cadeira de educação física (EF), a mais de ser obrigatória (com o que concordo em absoluto - entendendo-a apenas dispensável em o aluno fazendo prova da prática assídua de desporto em meio extra-escolar), contribui, com a respectiva nota, para a média com que a rapaziada se candidata e é ou não admitida ao ensino superior, independentemente do curso concretamente pretendido. Vale dizer: um jovem que, coisa cada vez mais rara, tenha vintes a física, matemática e biologia, pode ainda assim não entrar para o curso de, digamos, medicina, caso a EF (porque é que já não se chamará ginástica, ou, vá lá, desporto?) seja fulminado com um onze. Em seu lugar, poderá entrar no cobiçado curso um outro que, portador de dezoitos às demais ditas cadeiras, tenha um dezanove a EF. E aqui ainda é o menos. Em tal exemplo, e independentemente de alguma injustiça, sempre estamos a falar de bons alunos. Em todo o caso, pode sem esforço perceber-se o que acontece pelas escolas deste desgraçado país aos gorduchos e às trapalhonas que sempre em todas as escolas há. De pouco lhes pode valer o muito que eventualmente aprendam (o que dificilmente lhes sucederá na escola...) e saibam de matemática, física, biologia, história, geografia, filosofia ou línguas, pátria e estrangeiras. Como, já agora, a um bom ou mediano aluno pouco ou nada vale que porventura seja igualmente desportista, mesmo de considerável nível (judoca, nadador, tanto monta); se embirrar com as hóritas semanais dos invariáveis futebóis, andebois, basquetebóis, corridas e etc. cuja prática a escola lhe prodigaliza com abundância, de par com testes escritos sobre regras dos ditos jogos (!), está feito, o camelo, com a mania que é esperto... Leva com negativa a EF e já não vai para o curso que escolheu. No caso concreto da minha filha, sucedeu, como pela mesma altura a jovem me deu conta, que um desembaraçado professor de EF, rapaz sabedor das mais ínfimas regras dos desportos todos, tanto quanto era avesso às dificuldades da língua materna, confrontado com os lamentos da criançada relativamente a esta descabelada situação, encontrou ânimo de retorquir com o argumento, prontamente extraído do matutante bestunto, de que mesmo o maior génio matemático só será um estimável e puro cidadão se não for um "anormal motor" - a mais de não fumador, presumo.

Sim, foi esta a expressão do bicho, "anormal motor", e estive, pela primeira vez na minha carreira de pai, para ir à escola armar um escândalo e ameaçar toda a gente com processos. Passou-me. Pensei no Stephen Hawking e caguei no professor de EF. Diz que há tempos a coisa que temos por ministra prometeu alterar esta pouca vergonha, mas parece que isso também lhe passou. Não sei no que terá pensado entretanto, mas deve ter sido em pouca coisa, admitindo que sabe pensar.


O segundo exemplo que escolhi trazer a estas confidências é fresquinho, de ontem, e vem a jeito de ilustrar o processo de infantilização extrema a que a miudagem vem sendo sujeita. Já não bastavam a quase ausência de testes, o nível ridículo de exigência académica, o facto de os poucos testes terem normalmente as respostas nas perguntas (professores há que chegam a fazer segundos testes idênticos aos primeiros, para diminuirem alguma coisita no "insucesso"), a iliteracia e inumerismo escandalosos de muitos professores, a desautorização constante dos outros muitos que militam contra este estado de coisas. Não. Isso não chega. Há que ir mais longe no processo de estupidificação da Pátria. Agora, o que está na moda é a escola tornar-se o veículo de todas as idiotias da militância politicamente correcta do pós-modernismo. Ora tomem lá esta pérola: Num exame do 11.º ano (de geografia ou de física, já esqueci e a lógica não é boa conselheira para determinar a pertinência do tema), constante de uma colectânea de provas do passado recente (a coisa aconteceu mesmo, portanto), dava-se o exemplo de dois imaginários países. Num, a produção de energia distribuia-se na proporção de 25% nuclear, 35% hidroeléctrica e 40% de queima de combustíveis fósseis (ou coisa que o valha). No outro, 90% da energia era de produção hidroelécrtica e o restante por queima de combustíveis fósseis. Perguntava-se (pasmem - o exame era do 11º ano...) em qual dos dois a distribuição dos modos de produção de energia era "mais equilibrada" (coisa gira). A resposta certa, isto é, a como tal pretendida pelos urdidores da prova, era a que apontasse o segundo país como o da distribuição dos modos de produção de energia mas "equilibrada". A coisa não me admirou assim tanto. No livro de texto adoptado para a mesma cadeira (do 11.º ano, repito), cheio de bonecos, diagramas, fluxogramas e tudo o que dispense texto a sério, o conceito de "sustentabilidade" (coisa moderníssima mas árdua e complexa, que carece de aplicado estudo na fase final do ensino secundário) é ilustrado com a palavrita no centro de um triângulo esquematizado com três bolinhas nos respectivos vértices, a saber, "economia", "renovação" e mais qualquer coisa. Logo em legenda os autores se penitenciam de incomodarem as meninges da criançada com coisas sórdidas como a economia e, em legenda, aconselham a que a gestão dos recursos se faça segundo critérios de "sustentabilidade" e não... económicos!
E não se pode exportar esta corja. Ou, como diria o Camilo, «Portugal inçado de ladrões e a África que se nos despovoa!». Mas claro, estou a recordar um gajo que se suicidou; ainda foi a tempo, coitado...




12 comentários:

Anónimo disse...

E aqueça da faculade de direito (é verdade, juro) que em oral de economia política, perguntada pela perestroika, respondeu que era a mulher do Gorbachov? E esta hem? Essa menina precisava de umas orais, de facto, mas não daquelas orais!

Solum disse...

Tenho uma filha vítima desta idiotice. Espero que não veja o acesso ao curso desejado negado por essa razão. Escrevi à srª ministra que me respondeu através de uma subalterna, certamente uma douta senhora especialista em epistemologia da cambalhota enrolada à retaguarda, com um paleio de chacha inacreditável. Mas a coisa é mais grave, Kzar, HÁ TRÁFICO de INFLUÊNCIAS. Profes da cambalhota que, no ensino oficial, têm tectos máximos que «convidam» os candidatos aos cursos de média mais elevada a mudar para colégiocs privados, onde ocorre um extraordinário e maravilhoso milagre da pedagogia privada: em dois meses, um 15 transforma-se num 19! E há mais, profs do drible com passe frontal que, quando o aluno pede um exame de frequência à equivalência, o que é normal em todas as outras disciplinas, tendo o aluno a possibilidade de demonstrar num exame que vale mais do que o juízo do avaliador, menos na disciplina do pontapé para a frente. Aqui, profes descarados afirmam que lixam o aluno com uma prova prática. Para que não façam do uso dos seus direitos um hábito maçador! É esta corja que nos governa.
Vivemos no país em que se entra em engenharia civil sem exigir a disciplina de Física, é possível entrar para Direito sem Filosofia, entrava-se para um curso de engenharia com 4 (QUATRO) a Matemática, mas não se pode ir para Medicina ou para Farmácia sem que um profe de ginástica carimbe o passaporte! O Camilo é que a sabia toda! Herculano também. Antes de morrer balbuciou: «este país dá vontade de morrer!». E passou-se. Fez bem!

Anónimo disse...

Este tema já foi comentado no Porco, kzar, Precisamente em http://tapornumporco.blogspot.com/2007_02_25_archive.html
Na altura, como podes ver, houve 24 comments e, cereja no topo do bolo, um ou alguns defensores desa ideia peregrina de meter a ginática a contar pra média. Parece que o homo sapiens descende do homo habilis ó o caralho...
É realmente um barbaridade, mas a ministra da educação (?) anda preocupada com queões laborais e em ocupar os profs com trabalho de baby siters nas aulas de substituição. este miistério não discute uma única questão de fundo da educação do país - pedagógica, científica, curricular, filosófica ou outras. Trata questões laborais, trata do que deveria ser instrumental, mas aparece que é um meio em si mesmo. É absolutamente irresponsável, indigente e canalha... Os Jotas chegaram ao poder.
Mefistófeles (www.tapornumporco.blogspot.com)

Anónimo disse...

Mas o que é que vocemecês querem? O que é preciso é ginasticar a malta. Para se viver, digo sobreviver, neste país de faz de conta é precisa muita ginástica. Para aldrabice, a xico-espertice, a cunhazita, etc. Portanto, caluda. O que a Sr.ª Sinistra anda a fazer é a zelar pelos interesses dos nossos filhos. Está a prepará-los para a vida, a vida real. Ela é que sabe,a Sr.ª Sinistra.

Anónimo disse...

Tiro daqui o chapéu, ao Porco, com vénia acentuada pela primazia no tratamento do tema - que reconheço, aliás, pois segundo recordo na altura também deitei comentadela.
Mas é assim: estamos condenados ao esquecimento e a voltar aos mesmos assuntos, em ciclos eternos. Lá dizia o outro: all knowledge is oblivion...

Anónimo disse...

Se considerares que a disciplina de E. F. è uma disciplina de formação geral. Que enquadra 3 áreas de formação: Desenvolvimento da aptidão física saudável; area dos conhecimentos relativos aos processos de desenvolvimento e manutenção da aptidão física e conhecimentos relativos à organização e participação nos fenómenos sociais e desportivos e por último e talvez a mais importante (que não ginástica) diz respeito ao desenvolvimento de comportamentos sociodesportivos, competências psicomotoras essenciais ao desemvolvimento motor completo como por ex. a coordenação geral e especifica a percepção espacio-temporal, equilibrios etc... A EF utiliza apenas as matérias desportivas (andebol, basquetebol,ginástica, Patinagem, dança, para alcançarem estes objectivos bastantes importantes para o desenvolvimento multilateral e harmonioso do individuo. Considero que interpretando-a assim, não vejo porque é que um aluno com todas estas áreas e possibilidades de desenvolvimento não consiga atingir um nível de prestação elevado na disciplina. O problema é que o dualismo corpo espirito já lá ficou muito para trás, não serve uma sociedade actual que se diz moderna e onde o desenvolvimento motor está cada vez mais posto em causa, com a inércia e os condicionalismos sociais a que os nossos filhos estão sujeitos. A inteligência a desenvolve-se fundamentalmente pela acção e experimentação muito mais doque pelo estudo. Um aluno inteligente sabe de certeza escolher as melhores respostas de jogo para uma determinada situação.Já há estudos que dizem a actividade faz aumentar o nº de sinapses entre os neurónios e contribue para a diminuir a degradação das células nervosas.

Há concerteza muitos alunos que vão beneficar com a nota de E.F. O problema não me parece que seja da disciplina nem da norma que considera que a avaliação dessa disciplina também é importante para a formação geral dos jovens e deve contribuir para o acesso à faculdade. Poderá haver por vezes e por aí alguma pior interpretação disto por parte de alguns professores de EF
Nem todos podem ser em tudo muito bons, mas à concerteza que aceitar que este contributo da E.F é também importante e os que são bons em todas e também na disciplina de E.F. não podiam dessa forma ser prejudicados.

Kzar disse...

Motoranormal

Com todo o respeito: escondido por baixo de uma camada de "eduquês", isso é na pior hipótese um chorrilho de disparates do fascismo higienista que vem tomando conta da sociedade moderna, na melhor um resultado no credo acrítico e seguidista das tendências da "political correctness" da pós-modernidade.
É inaceitável e não passa a ser melhor por vir acompanhado da citação de umas evidências a propósito da relativização da dualidade corpo/espírito.
O problema continua sempre o mesmo: fazer contar a nota de EF(posto que nota deva haver e eu acho que não deve) para a média de um futuro candidato a medicina, engenharia, direito e etc., é desrazoável, injustificado e no limite apenas mais um factor de discriminações e arbitrariedades várias.
E não sei em que é que um professor de EF deva sentir-se diminuído por a "nota" da disciplina não contar para a média a não ser para os que queiram seguir essa área. Repito que quanto a mim a cadeira deve ser obrigatória, com excepção das contraindicações médicas devidamente justificadas e dos casos daqueles que demonstrem serem praticantes regulares de desporto em outro meio que não o escolar. E esgota-se aí, em minha opinião, a importância que para os alunos e a educação em geral deve ter o desporto. Já não é nada pouca.

Kzar disse...

PS: divergimos insanavelmente quanto aos modos mais adequados e eficazes de desenvolver a inteligência (conceito assaz discutível mas que aqui dou de barato), ocorrendo-me apenas dizer que sou irredutível na opinião de que nessa sede nada, absolutamente nada, mas nada de nada, kaput, zero, coisíssima nenhuma, chega a importar uma pequena fracção do que importa o estudo; muito estudo, árduo, díficil, lento, obstinado e contínuo, pela vida fora.
Mas pronto, são visões pessoais. No meu caso, idiossincrassias de um conservador, retrógrado e reaccionário, quando não mesmo fassista, que não sabe nada sobre "competências", especialmente "psicomotoras",
"aptidões", "comportamentos sociodesportivos", "áreas de formação", "desenvolvimento multilateral", "acção e experimentação" e etc.

Anónimo disse...

Não percebo porque é que os teus argumentos vêm acompanhados de insultos vãos.
Eu não defendi que um aluno com baixa classificação a EF deva ser prejudicado no acesso ao curso que deseja. Eu apenas defendo que um aluno que também é bom a EF não deva ser prejudicado por causa de não contar a Classif de EF. Desta forma também haveria descriminação ou não. Mas para mim a descriminação começa muito cedo quando as crianças com mais dificuldades não têm acesso aos melhores modelos de desenvolvimento e aprendizagem, continua com a possibilidade dos pais pagarem explicações para chegar ao 19 para os seus filhos conseguirem entrar, enquanto aqueles que não tem essa possibilidade ficam de fora e acaba com as médias de acesso aos cursos (determinadas por instituições corporativas com objectivos abstrusos). A mim ninguém me diz que um aluno com 15 não possa vir a ser um excelente médico.

Não é a disciplina de EF que é discriminatória nem a sua avaliação.

Solum disse...

O Kzar tem total razão. o anónimo mais não faz do que acrescentar um redemoinho de outros aspectos, certamente discutíveis cada um por si, com o único propósito de inviabilizar a discussão. E ela estava centrada aqui: é um absurdo que um aluno que quer ir para Medicina ou Farmácia, ou Direito, ou Bioquímica, ou o que seja, tenha as suas aspirações inviabilizadas por causa da nota a EF. Estamos a falar do 12º ano que é um ano de acesso à universidade, não é, repito não é, formação geral. Que a EF é importante toda a gente aceita. tão importante que dispensa que a nota conte para nota de candiatura à universidade. mas não é mais importante do que a História, a Filosofia, o Inglês, o Espanhol, o Francês, o Alemão, o Latim (o latinzinho, meu Deus, o latinzinho) e uma série de disciplinas académicas essenciais. Todavia, as únicas disciplinas comuns e obrigatórias a todos os cursos e a todos os anos da escolaridade básica e secundária são o Português e a EF. Isto é um absurdo inclassificável. tanto mais grave quanto a luminária do sr. Walter Lemos em tempos afirmou, a propósito da retirada da Filosofia e sua desqualificação curricular, que não achava importante que a disciplina contasse para seriar os candidatos ao ensino superior. Isto é um absurdo. É isto que está em discussão. Quanto às psicomotricidades, às dualidades corpo-alma e outras coisas que tal, deixemos para outros palcos e outros tempos.

Anónimo disse...

Quais insultos?
Por mim, sinto é insltada a inteligência (a minha e a geral da humanidade) com argumentos do tipo alguém ser prejudicado por a nota de EF não contar, ou por fazê-la contar ser uma espécie de contrapeso à discriminação (?) dos alunos com menos recursos...
Insulta-me a inteligência, repito, mas já não me espanta.

Anónimo disse...

Qualquer galinha poedeira tem melhores performances atléticas do que o Carl Lewis. O que distingue um homem é a sua performance intelectual, a sua moralidade. Não discuto que a educação física possa contribuir para isso. Equipará-la à filosofia, à moral, à física, à biologia, à matemática, de entre outras, é já pura e simplesmente absurdo.