Cícero, denunciando Catilina no Senado

Cícero, denunciando Catilina no Senado

23 maio, 2007

Uma língua pura

O português não foi sempre esta língua chilra e coalhada dos neologismos parvos e politicamente correctos que hoje em dia nela fermentam e a entumescem, fazendo-a espessa e gelatinosa. Em outros tempos, quando ser português era ordinariamente razão de crescimento da honra e da auto-estima de cada um, escrevia-se (e presuntivamente falava-se) muito melhor. Não haviam ainda os psicólogos e pedo-psiquiatras télévisivos, sociólogos vilãos, jornalistas jornaleiros, políticos e politólogos trapaceiros e nem os tudólogos de toda a espécie, que à força de continuada e esforçadamente a conspurcarem reduzem a nossa língua aos trapos andrajosos com que de costume vem tentando cobrir suas vergonhas. Naturalmente, tudo está em como a usamos, mas se é verdade que nem todos participamos desse sórdido festim de abastardamento, não o é menos que a maior parte dos seres escreventes (e falantes) albergados na Pátria já perdeu todo o sentido da estética linguística e da pureza. Talvez sejam a isso dirigidos pelos assuntos que usam versar. Os tais outros tempos, por desgraça antigos, não conheceram a f. das minúsculas, o nobelizado Saramago sem pontos nem vírgulas e nem parágrafos quase, e muito menos o pedo-psiquiatra que sabe tudo sobre afectos, "vivências" e outras coisas do oculto; produziam outras almas, com outros assuntos, para felicidade dos povos que os viveram. Lá dizia o Oliveira Martins (outra boa época, mais recente mas ainda assim antiga): Portugal acabou com a dinastia de Avis, em 1580.
Não resisto, aqui, a rememorar esses tempos, esses assuntos e essa escrita. Os exemplos são muitos, a Deus graças, mas o que tenho em mãos para agora servir é de um tal Jorge de Lemos, nosso maior, natural de Goa, onde vivia ainda em Dezembro de 1593, após uma pouco conhecida vida de que ainda assim podemos saber ter passado pelo cargo de secretário de diversos vice-Reis e andanças várias por Valença de Aragão e Madrid. Em 1585 publicou a "História dos cercos que em tempo de António Moniz Barreto, Governador que foi dos estados da Índia, os Achens e Jaos puseram à fortaleza de Malaca, sendo Tristão Vaz da Veiga capitão dela" (fantásticos, estes títulos que se usavam antes da moderna concisão), obra impressa em Lisboa por Manuel de Lira (com licença do Supremo Conselho da Santa e Geral Inquisição, segundo adverte o frontispício).
Obra muito rara, dela existem, conhecidos, quatro exemplares. Um da Biblioteca Nacional, outro da Bibiloteca do Paço Ducal da Casa de Bragança, em Vila Viçosa (por legado do Sr. D. Manuel II, que foi seu proprietário), e mais dois, que são cópias manuscritas, uma porventura coeva do autor e depositada na Bibilioteca Geral da Universidade de Coimbra, outra em versão setecentista e jacente na Biblioteca Pública de Évora. O primeiro desses exemplares foi reeditado em 1982 (edição fac-similada), em Lisboa, pela Biblioteca Nacional. Traz curta mas doutíssima nota introdutória de um distinto senhor, de sua graça Pedro da Silveira, a quem vitimei com o latrocínio destas poucas notícias que aqui dou. É dela que passo a transcrever uns suculentos pedaços, modernizando a grafia e a pontuação a crédito de maior facilidade na leitura.
Do prólogo ao Leitor:
«Pareceu-me dever advertir nesta página, a quem este livrinho quiser ler, dos erros que na impressão dele se cometeram (que do meu em o compor sem as alfaias que para tão peregrino e eminente ofício se requeriam, entendo que dou bastante satisfação na epístola dedicatória do felicíssimo Princípe Cardeal Arquiduque de Áustria, nosso senhor, para poder escusar outra de novo) porque como alguns dos erros mudem o sentido da sentença, ou cláusula, e outros o decomponham noutras: não sem causa acontecerá confundir-se que pela mesma de os haver achado, afirme que foi maior o do atrevimento que tive em querer meter este compêndio dos cercos de Malaca na conservação dos homens, com pouco exame: por quanto barbarizar em coisas muito cuidadas e contaminar a pureza delas com falecimentos notáveis, não tem mais desculpa que a da confissão duma muita crassa ignorância: donde não há apelar (com esperança de perdão) para a benevolência e magnanimidade de varões doutos e avisados, pelos validíssimos embargos com que os ministros de Momo e Zoilo costumam sempre vir, por não perderem o direito de sua ardente emulação. Pelo que aponto aqui algumas erratas que mais dissonantes parecem: e passo em silêncio outras, que não ofendem tanto as orelhas, por serem imperfeição de letras de menos ou mais tinta e da própria forma delas: porque se quisera expressar todas, ficaria quimerizando e dando em outro vício pior» [segue curtíssima errata]
Da segunda parte, cap. XIV (após o levantamento do cerco pelos Jaos, em debandada):
«Desta torpe e afrontosa fugida se pode inferir que se a cidade não estivera tão doentia e não tivesse por tão certa e averiguada a vinda do Achem, que bastara a guerra que Tristão Vaz mandava fazer aos Jaos com a armada de remo para dos quinze mil que foram cercar Malaca não escapar nenhum: poque passavam de seis para sete mil os que morreram a ferro e fogo e doença: e chegaram com menos ainda ao seu reino, porque como eram poucas as embarcações e menos os mantimentos, e os mais deles se embarcassem enovelados uns sobre os outros, e fossem combalidos já, e infectados do contágio do ar corrupto e brejoso em que estiveram, foram alijando pelo mar corpos mortos e meios vivos, por incuráveis e prejudiciais à saúde dos sãos.»
Três Bravos, entre muitos [da 2.ª parte, cap. XVI]
«O licenciado Martim Ferreira teve uma estância; nela deu mesa enquanto o cerco durou a trinta soldados, à custa de sua fazenda; e pelejou como esforçado soldado, sendo por profissão letrado»
«De Diogo Lopes o Soldado, que posso dizer que este sobrenome, que mereceu pela espada, não diga melhor, e com mais energia e veemência, para os que o ouvirem, e souberem que foi a correspondência tal, antes e depois da poderosa voz do povo lho dar, folgarem de lhe guardar o seu lugar em qualquer que se tratar de cavalaria e esforço. E para se persuadirem que não deixou nunca de servir bem e de se extremar no serviço, se lembrem que no primeiro assalto que se fez nas tranqueiras dos Jaos, fiou Tristão Vaz dele a dianteira.»
«Nuno Rodrigues capitão do Baluarte das Onze Mil Virgens, deu também mesa a outros trinta soldados, à custa de sua fazenda. Com eles serviu com muito cuidado e muito prestes em tudo, como quem sabia já a que sabia vencer inimigos da fé; porque tinha pelejado com os Achens em companhia do mesmo capitão Tristão Vaz (com quem militava neste cerco contra os Jaos) levando um navio com despesa sua, sem fazer nenhuma à fazenda d'El Rei.»
Soneto [de Diogo Bernardes]
«Porventura no Lethes sepultada
Do nosso Veiga a fama nos ficara,
Se Lemos com a pena não contara
O que ele fez com a sua forte espada
Ser deve em toda a parte celebrada
Tão douta história (inda que breve) clara
Em prudência, em estilo, alta, e rara
Não de ficções, mas de verdade ornada
De bárbaros sem conto a força dura
Com poucos mas ousados lusitanos
Venceste, ó capitão forte e prudente
Teus feitos não direi que são humanos
Que mais humano é quem se aventura
Por seu Deus, por seu Rei, por sua gente.»

E assim, que a coisa já vai prolixa, por ora não maço mais os esforçados leitores com sucessos de pelejas antigas. Voltarei ao tema, sem esquecer o do seu lado negro - porque também não falta na literatura lusitana, antiga e moderna, tratamento da lenda negra da Índia portuguesa; sempre em bom português, e por falar nisso vou procurar, nos baús e cantos mais escondidos da minha biblioteca, entre o Diogo do Couto e o Fernão Mendes Pinto, o que romanceou Elaine Sanceau ("Os Portugueses na Índia") sobre as gloriosas palavras de D. João de Castro, Viso-Rei da Índia, aos mercadores de Goa, quando lhe foi precisa a ajuda destes para armar os socorros à praça de Dio, então em segundo e medonho cerco, posto pelo Coge Sofar.

6 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante o "post".

Contudo,para quem está a dissertar sobre a Língua (pura) Portuguesa, deveria ter havido o cuidado de não cometer o erro de escrever o imperfeito do indicativo do verbo haver no plural, quando se sabe que, no sentido de existir (como é o caso), se usa sempre a forma do singular:
"Não "haviam" ainda os psicólogos e pedo-psiquiatras télévisivos..." (este "télé"... não vou comentar...).

Concedo o benefício da dúvida, considerando que foi tudo, tão só e apenas, "lapsus calami".

Saudações de um leitor

FMS disse...

Qual de vós é Pedro Arroja?

Anónimo disse...

Fms:

Nenhum, credo!

Leitor atento:

Há com efeito alguns lapsos no texto. É uma gaita, e bem írrita. Porém, e quanto ao "télé", trata-se de um "erro" voluntário, de uma inocente idisossincracia de escrita, com intuito jocoso; também uso quase sempre "fassistas" e "fassismo", por razões que aqui não cabe adiantar.
No que respeita ao reparo feito a propósito do uso do plural, aí, reclamo licença para, ao menos em primeira abordagem, discordar de Vexa. Não considero a regra que aponta imperativa e de resto, mais radicalmente, não lhe atribuo essa natureza (de regra). Admito a possibilidade de estar errado e não fazer nisso a melhor opção, mas é pensada.
Não sou gramático e o conhecimento que tenho da língua pátria é quase todo, perdoe-me a analogia, "na óptica do utilizador", sendo muito fraco em "programação" - vale dizer, uso o "programa" com alguma desenvoltura (passe a imodéstia), mas sei pouco da "programação".
Agradeço, como é óbvio, a gentil observação - e ponderá-la-ei.

P Amaral disse...

«Nova Gramática do Português Contemporâneo» de Celso Cunha e Lindley Cintra, Edições João Sá da Costa, 1984:
«Verbos impessoais
Não tendo sujeito, os VERBOS IMPESSOAIS são invariavelmente usados na 3.ª pessoa do singular. Assim:
(...)
b) o verbo haver na acepção de «existir» e o verbo fazer quando indica tempo decorrido:
Houve momentos de pânico.
Faz cinco anos que não o vejo.»
Pág. 443.
Não obstante, tinha ideia que se pudesse usar tanto o singular como o plural; não há (ou hão) como ir aos livros.
Por último: vocês não são um bocadinho de muita extrema esquerda embora usem linguagem da direita?

Anónimo disse...

Extrema esquerda? Extrema direita? Vade retro Satanás! Somos extremistas apenas no que respeita à liberdade de pensar, na liberdade de não engolir tudo o que alguns pastores que por aí pululam nos querem impingir,enfim, na liberdade de nos expressarmos.

Kzar disse...

Obrigado, Trepalium. Parece que terei de me render...